J. C. Paiva, Coronavírus, disciplina e liberdade. Site PontoSJ (que se recomenda…). 02 de abril de 2020.
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Neste retiro forçado a que estamos sendo sujeitos, pode inspirar-nos quem, voluntariamente, escolheu viver em clausura. Penso nas ordens conventuais e permito-me, por analogia realista, estabelecer algumas pontes. Face ao momento que vivemos não deixamos de ser procurantes radicais de liberdade, principalmente daquela liberdade interior que francamente liberta. A disciplina, bem vivida, estrutura a nossa liberdade.
1- Escolher o que a realidade impõe
Há uma máxima que sempre me seduziu e que serve como uma luva nos tempos que atravessamos: “é melhor querer o que faço do que fazer o que quero”. Neste sentido, acolhendo o recolhimento, por imperativos éticos e cívicos elementares, estamos a ensaiar liberdade. É verdade que o fazemos como milhões de cidadãos no mundo, mas escolher aceitar é desde logo uma resignificação e um subsídio de liberdade. Nos conventos, em particular, se perceberá internamente que a obediência é uma expressão de liberdade. Mas, fora do dinamismo monástico, podemos também entender e viver que obedecer (à realidade, como ela é) se confunde com a nossa própria liberdade interior.
2- As rotinas como escolas de vida
Dentro de um convento as regras são uma pauta fundamental. A nossa vida já se alimentaria de rotinas e regras mas, agora que estamos mais tempo e mais juntos em casa, esse pulsar é ainda mais vital. Algumas sugestões, em tempo de recolhimento intenso:
a) Marcar horas no dia e tentar (melhor, fazer por) cumprir para: acordar, deitar, refeições, exposição a notícias, leitura, estudo, permanência em redes sociais, filmes, acesso a telemóvel e computador, exercício físico, oração, tempo (francamente) livre, etc.
b) Fazer algum planeamento semanal de coisas como menus das refeições, visualização de filmes, arrumações, trabalho, alimentação espiritual (meditação, missas on line, leituras dirigidas), etc.
c) Respeitar o outro na sua liberdade, incluindo na sua fragilidade face a algumas regras e dificuldades. Mais ainda, quando, por feitios divergentes ou outras incompatibilidades interpessoais, não for possível partilhar as mesmas rotinas, criar alternativas e variantes de algumas regras, sem nunca perder de vista a importância de um tempo comum.
3- A atenção como virtude maior
Mais do que uma regra inspiradora, a atitude contemplativa é um estilo de vida nos conventos. Contemplar, numa aproximação mística, pode apontar para ver um tapete não tanto do seu avesso, com os nós e reticulações estruturais, mas antes do lado da harmonia e da beleza do resultado. Uma certa mística da atenção pode ser muito favorecida nestes tempos com mais tempo. Notar o cheiro do limão, valorizar a textura dos alimentos que se preparam, reforçar o sabor do que se come, olhar atentamente as ofertas da natureza. O treino desta atenção, reconfortante, por si só, pode constituir-se numa disciplina.
4- O recreio obrigatório
Não confundir disciplina com produtividade e, pelo contrário, valorizar o ‘inútil’. Por isto mesmo, mais do que em época normal, significar e não abdicar de momentos largos de sentido lúdico, como dançar, ouvir música, jogar, conversar. Como nos conventos, o recreio não é facultativo…
5- A meditação como possibilidade
Mesmo para quem não tem prática religiosa, a meditação tem vindo a apresentar-se como uma ginástica espiritual muito útil. Há técnicas e inspirações mas um ingrediente fundamental, também ele muito sagrado nos conventos, é o silêncio. Procurar espaço e tempo de silêncio pode ser uma rotina com muitos benefícios. Nesta fase da nossa vida podemos aprender melhor a encontrarmo-nos connosco mesmos e com uma Presença crucial. Podemos, também, aprender a saber estar sem fazer nada…
6- Avaliar com a grelha tensional disciplina/liberdade
Há que fazer um esforço por ir avaliando a nossa disciplina face à disciplina… Aferir, precisamente, a forma concreta como cumprimos ou não o que estabelecemos e, principalmente, se esse cumprimento foi realizado em liberdade interior e se nos levou à liberdade… O exame de consciência, prática ritual em algumas espiritualidades, que não dispensa o registo do que se acertou, pode ser um bom caminho.
Ao mesmo tempo, quase que paradoxalmente, ter rotinas, agendamentos e planeamento, é compatível com a mais radical abertura a imprevistos. Também por isto se diz que “as regras são para quebrar”, ainda que tal deva acontecer não tanto por fraqueza de persistência e vontade pessoais mas por “convite” dos acontecimentos e da própria liberdade dos outros.
7- A complexa metáfora educativa
Daria uma outra reflexão, e longa (…) o dilema de jogar a tensão disciplina/liberdade no processo educativo. A criatividade, a persistência e principalmente a paciência são pedidas em escala intensa diante de filhos em dinamismo educativo, seja qual for a sua idade. Valerá a pena um esforço grande em propor em vez de impor. Reservar a dose menor possível de imposição será um bom caminho, ainda que, em muitos casos, quando se belisca a liberdade de terceiros ou a própria segurança pessoal das crianças, tenha mesmo que ser… Há que envolver todos os membros da família no estabelecimento e ajuste de horários e regras para que a disciplina, tendo sido participada, possa ser escolhida, vivida e avaliada como uma alavanca de crescimento para todos.
Às crianças e jovens, em particular, podem ser proporcionadas novas jornadas alternativas, que conjugam novidade com rotina e aprendizagem de competências domésticas: cozinhar, limpar, passar a ferro, etc.
Uma referência, ainda, às enormes potencialidades do treino da meditação infantil e do ensaio da quietude corporal, tão preciosos e tão difíceis de praticar no reboliço ordinário, com as agendas das crianças, tipicamente, preenchidas de mais…
Por mais racional e até apetitoso que seja este trilho, disciplinar não é fácil. Melhor, a disciplina, como a vida, é difícil. Mas quem disse que o difícil é impossível? Onde está escrito que o difícil não gera frutos? A fé, terreno oferecido que nos quer como agricultores, é um caminho em movimento. A disciplina, como nos aponta a tradição e a experiência quotidiana, é um dos meios para viver fecundamente todas as fases da nossa história.
PS: Estou consciente que nesta crise há pelo menos três tipos de pessoas: 1) as que trabalham na frente de batalha, principalmente na área da saúde; 2) as que estão em sofrimento particular, ou por estarem doentes, ou por estarem a ser espetadoras do sofrimento de pessoas próximas, ou por se encontrarem em grande situação de contingência emocional, social, económica, laboral, etc; 3) os outros todos, onde me incluo. Esta reflexão é para este último grupo. Para os dois primeiros, além da minha disponibilidade frágil mas criativa, devolvo e ofereço a graça de praticar um silêncio em que os invoco…