eu-eu, eu-tu e eu-Tu
Os três pilares quaresmais são muito inspiradores e, sendo típicos deste tempo, são pilares para a vida toda: jejum (relação comigo mesmo), esmola (relação com os outros) e oração (relação com Deus)
Os três pilares quaresmais são muito inspiradores e, sendo típicos deste tempo, são pilares para a vida toda: jejum (relação comigo mesmo), esmola (relação com os outros) e oração (relação com Deus)
As práticas ascéticas – e o jejum, em particular – não visam a privação pela privação nem sequer a contenção ou a repressão do prazer. Bem entendidas, bem vividas, são alavancas dos nossos espaços de recetividade…
Na liturgia católica romana deste fim de semana escuta-se Mc 1, 1-8
Em tempo de Advento concentramo-nos no riquíssimo panorama e real do deserto, onde aparece João Baptista a proclamar. Não será por mero acaso que a porta que é João Baptista parte do deserto, talvez físico mas, certamente, simbólico. O deserto que somos nós! O verdadeiro arrependimento só se pode fazer a partir do verdadeiro deserto que somos nós. Sem entrarmos no nosso deserto íntimo não nos podemos arrepender e recomeçar verdadeiramente, porque a graça de Deus quis precisar da nossa realidade, do nosso deserto, para se revelar. Precisamos, talvez, no Advento e não só, de valorizar o deserto interior, de entrar nele, de o olhar, de o admitir, de o saborear. Sem silêncio interior e exterior não há tangência no deserto e, porventura, não há conversão…
Na liturgia católica romana deste fim de semana escuta-se Mc 13, 33-37
O início do Advento, enquanto preparação para o Natal, é marcado por sugestões bíblicas de prudência, vigilância e atenção. Estes ‘modos-advento’, convém registar, embora possam ser alimentados também comunitariamente, apresentam uma agenda muito pessoal e responsabilizante. Um qualquer cristão distraído, em devaneio pedagógico, poderia interpretar como missão vigiar os outros: filhos, vizinhos, paroquianos, alunos, discípulos… Não, é uma missão muito pessoal: estar atento a mim próprio, antes de mais. Em redutos de silêncio e paragem convém conseguir estar atento a mim mesmo, a Deus dentro de mim…
Na liturgia católica romana deste fim de semana escuta-se Ez 37, 12-14
«hei-de fixar-vos na vossa terra e reconhecereis que Eu, o Senhor, digo e faço»
No traço judaico-cristão, reconhecemos um Deus criador-amante, que se quer mostrar e que se quer dizer. De alguma forma, é esta a profecia que se rasga neste trecho do Livro de Ezequiel. Na fé, acolhemos um Deus-que-promete. Em tempo de Quaresma (que prepara a grande ponte entre os homens e Deus) entrevemos a morte amorosa e a ressurreição, que explicitam para os cristãos a ‘cereja no bolo’ desta profecia, deste Deus que só sabe criar amando e amar criando. E nós, por graça, podemos ser coautores da profecia…
Na liturgia católica romana deste fim de semana escuta-se Slm 22
«habitarei para sempre na casa do Senhor»
«Habitarei para sempre na casa do Senhor», proclama o refrão do salmo. Este convite à fidelidade (para sempre) é dos dons mais preciosos da fé. O compromisso, a fidelidade e o ‘para sempre’ podem soar a monótono e a ‘sem aventura’. Ser fiel, porém, pode ser um permanecer que conduz a saborear terrenos de abundância. As tensões paradoxais em que vivemos (e que somos!) conduzem-nos a uma possibilidade dos extremos se tocarem. Um desses jogos dicotómicos acontece com a liberdade e com o compromisso. E se ‘ficar para sempre’ fosse uma abertura? E se a obediência fosse uma liberdade?…
Na liturgia católica romana deste fim de semana escuta-se Slm 94
«se hoje ouvirdes a voz do Senhor não fecheis os vossos corações»
O pecado (o ‘tiro’ menos certeiro) inqiueta-nos. O afastamento do amor não nos traz paz ao coração. As palavras do salmo apelam à abertura dos nossos corações, ao rasgar de espaços interiores para ao amor de Deus. Santo Agostinho exprime de forma belíssima o confronto entre a sede de infinito e a abertura a Deus. Diz ele: “Tu, Deus, fizeste o meu coração para Ti e o meu coração não terá paz se não repousar em ti”. Confrontados com os nossos limites, com os limites dos outros, com os limites do mundo, valerá a pena repousar a nossa inquietude em Deus…
Na liturgia católica romana deste fim de semana escuta-se Mt 17, 1-9
«o Seu rosto ficou resplandecente como o Sol»
A transfiguração de Jesus revela com clareza a filiação de Jesus. Em chave de leitura de fé, esta cena aponta-nos o Filho de Deus. Implícito, está igualmente o convite aos que, olhando Jesus, se deixam transfigurar a eles próprios. É este também o desafio que se coloca a cada um de nós: transfigurarmo-nos, reconhecermo-nos sempre buscados e vivermos como Filhos de Deus, assemelhando-nos a Ele, nesse reconhecimento e nessa forma de viver. No limite, fruto da alegria brotante de uma vida transfigurada, o nosso rosto poderá ser “resplandecente como o Sol”. Está visto que a Quaresma, enquanto caminho de regresso a Deus, não tem a ver como rostos macambúzios…
Na liturgia católica romana deste fim de semana escuta-se Cor 2, 1-5
«apresentei-me diante de vós cheio de fraqueza e de temor»
É curioso reparar na explicitação de Paulo em relação aos seus sentimentos e emoções enquanto protagonista da atividade apostólica. Ele não se reconheceria como o ‘herói de Cristo’, sem mácula e sem dúvidas, mas o ser frágil que se faz forte pela esperança e não pela impecabilidade. “Não me apresentei com sublimidade de linguagem ou sabedoria”, diz Paulo, como que dizendo que para se ser apóstolo não é preciso dons extraordinários mas antes humildade e confiança, fé num Deus que é amor e que se quer revelar a todos, por via de cada um de nós. A experiência de seguimento cristão poderá tornar-nos, em certo sentido, ‘maiores do que nós mesmos’. Mas o ponto de partida desse crescimento é, precisamente, a consciência de fraqueza e de fragilidade.
Na liturgia católica romana deste fim de semana escuta-se II Tg 5, 7-10
«Esperai com paciência a vinda do Senhor»
A Epístola de Tiago aponta-nos para a paciência como virtude central na fé. A par da persistência, do propósito, do exercício, do trabalho, da edificação, da ação, da vontade e da disciplina, a paciência é uma espécie de cenário de fundo crucial no dinamismo da crença e, porventura, o horizonte do Advento. Quando o mundo nos esmaga, quando nós próprios nos reconhecemos carentes (mesmo que crentes), quando constatamos dentro e fora de nós mecanismos de fuga do essencial (preços de liberdades…), eclode como urgência a mãe de todas as virtudes: a paciência. A paciência é também saber pisar o deserto, é saber estar. A paciência, a bem dizer, é o distintivo da fé.