O Concílio de Trento, iniciado em 1545, reafirmou a autoridade da Igreja Católica na interpretação da Bíblia, mas o texto do decreto conciliar é bastante genérico e até mesmo ambíguo. Os padres conciliares decretaram que ninguém se deveria permitir «interpretar a Sagrada Escritura, nas matérias de fé e de moral, que pertencem ao edifício da doutrina cristã, distorcendo a Sagrada Escritura segundo o seu modo de pensar, contrário ao sentido que a santa mãe Igreja determina». O texto conciliar não especificou, porém, critérios suficientemente precisos para a definição, por exemplo, de uma questão como sendo de fé ou de moral, nem entrou em pormenores sobre o difícil problema de decidir quando se deveria interpretar a Escritura em sentido literal ou em sentido metafórico.
Desde a tradição medieval que é comum distinguir quatro sentidos possíveis no texto bíblico, a saber: 1) histórico ou literal, 2) alegórico ou cristológico, 3) tropológico ou moral e antropológico, e, finalmente, 4) anagógico ou escatológico.
A tradição hermenêutica é, pois, bem longínqua na história da Igreja. Conhecem-se dois extremos caricaturais, em traços deixados ao longo do tempo e ainda hoje presentes: de um lado, uma visão restritiva e estaticamente ortodoxa da autoridade da Igreja na interpretação bíblica e, do outro lado, uma personificação originalista, que não tem em conta a riqueza da tradição, nem a procura duma expressão comunitária de afirmar dinamicamente as verdades da fé. Caminhamos, ainda hoje, nesta tensão…
A Igreja dos pobres sempre me fascinou. O início da Igreja é feito de pouca coisa, qual pobreza. Nas suas inquietudes e escapatórias, sem querer ser historicamente minimalista, são sobretudo os desvios dessa pobreza que descaraterizam a seiva da Igreja. Também nos nossos tempos, os legítimos olhares mais duvidosos sobre a Igreja fitam as suas riquezas. E eu próprio, quando me olho mais criticamente, como cristão, vejo falta de pobreza.
1- O que será a pobreza?
A palavra ‘pobreza’ está quase gasta, entrecruzada erraticamente nas suas dimensões pessoal, espiritual, cultural, social e política. Há várias pobrezas, dentro e fora de nós. A falta das necessidades mais básicas, como aquela de comer, é um rosto de pobreza que não podemos escamotear. Neste mundo, agora mais pequeno e ligado, continua a ser aviltante haver um qualquer habitante do planeta que não tenha o que comer. Enquanto isso acontecer, nenhum de nós pode estar descansado. Comer é necessário mas não suficiente para se ser livre. No seu poema cantado “liberdade”, Sérgio Godinho diz bem: “Só há liberdade a sério quando houver: a paz, o pão, habitação, saúde, educação”. Neste sentido, a promoção concreta das condições de vida de todas as pessoas, nestas diferentes áreas, são o nosso combate à pobreza. Há uma dimensão de pobreza mais profunda, que ultrapassa o pão mas que só é conquistável por quem tenha um mínimo de pão: chamamos-lhe pobreza espiritual. É uma bem-aventurança de abertura em crer para nada querer. Percebe-se bem naquele conto oriental segundo o qual um mendigo pediu a uma pessoa de posses que lhe desse algo. Essa pessoa deu-lhe tudo o que tinha. No dia seguinte, o pobre voltou e retorquiu: “ensina-me a ser como tu. Dá-me a riqueza de que eu preciso, que é a capacidade de dar tudo o que tenho, como fizeste ontem comigo”. Compreendemos bem que haja gente (e as duas gentes dentro de cada um de nós…) que seja rica-pobre e pobre-rica…
2- A pobreza nos evangelhos
Há extensa bibliografia sobre este assunto mas talvez se consiga uma síntese consensual sobre a forma acolhedora, provocante e libertadora como Jesus se dirigia às pessoas. Todas elas carentes, frágeis, desejosas de algo mais. Todas elas, pobres, como nós. Os pobres do Evangelho são, pois, a mulher adúltera, o amigo traidor, o cobrador de impostos, o cego e a sua família, os convivas das bodas de Caná, o coxo e o paralítico, a mulher viúva e a samaritana com sede, a multidão com fome. O desfecho com os famintos pode inspirar-nos na resposta à pobreza, como Igreja: “Dai-lhes vós mesmos de comer” (Mc 6, 37).
3- Uma pobreza que esmaga
Face à pobreza e à injustiça, ao que falta de amor no mundo, sinto-me tremendamente esmagado. Esta pressão tem dois sentidos, que apertam ambos o meu coração: a compaixão evidente por aquele que sofre e a minha própria dor pelo pouco que dou. Para estas entaladelas, ajudará a paciência, a perseverança da fé e a consequente ação. Não há outra resposta à chaga que não seja tocar-lhe. A insuficiência da minha doação aos pobres tem, aliás, algo parecido com a epistemologia da ciência e não só: quanto mais descobrimos, mais ignorantes nos encontramos, como se tentássemos alcançar uma linha do horizonte, que sempre se desloca adiante… Com a caridade, palavra desgastada mas que vale como sinónimo de amor, e particularmente amor aos mais pobres, acontece algo de parecido: quanto mais se dá mais se constata o que falta dar… Há pois um equilíbrio dinâmico a empreender, importante mas difícil, entre: a) assumir o que falta como luta face à pobreza, realizando concretamente a partilha (de bens, de tempo, de presença, de nós mesmos…); b) constatar a nossa insuficiência senão mesmo certa mediocridade neste combate; c) resistir sempre a ficar no sofá, excessivamente adaptado à complexidade do problema e às limitações próprias da ação. Há um certo conforto, também ele evangélico, que podemos valorizar a partir do pouco que fazemos; faz-se muito do pequeno: do grão de mostarda, da migalha, da moeda modesta, do cesto do pão…
4- Não perder de vista que a austeridade escolhida é uma burguesia
Aprecio e tento praticar a chamada economia da frugalidade, que nos aponta Serge Latouche. Mas há que registar que nós, deste lado do mundo, com comidinha à mesa e banho quente, podemos melhor fazer este caminho. Não posso pedir a um menino que vive de colheita de plástico em lixeiras da Indonésia que seja frugal, nem a um habitante de uma favela brasileira que não deseje fortemente ter um carro bom. Posso ser mais pessoal nisto: fui conquistando certa austeridade escolhida, mas tenho um salário garantido. Abrandei radicalmente o turismo longínquo, também a pensar no ambiente… mas já conheci muitas cidades em quase todas as latitudes; não tenho no meu horizonte trocar de veículo de transporte, mas já me fartei de andar em dunas com uma mota de boa cilindrada Honda Transalp; evito ir a restaurantes… mas já fui muitas vezes comer fora, etc, etc. Por isto mesmo, não me escandalizo com as pessoas que, tendo rendimento mínimo garantido, tomam o pequeno almoço fora… Claro, para elas é excepcionalmente bom, o que para nós seria criticamente ordinário… A sua pobreza pode não ser nem só nem principalmente de pão… mas é pobreza e pede a nossa entrega e a nossa criatividade. Compreendem-se bem os padres da teologia da libertação que, apesar dos conhecidos exageros de tal movimento, tinham muita razão cristã quando invocavam uma máxima a ter em conta: ao oferecer o pão da eucaristia, tenho que oferecer também pão a quem não o tem para comer.
5- Creio na Igreja, vou à Igreja, estou na Igreja ou sou a Igreja?
Quando rezo o credo, na esperança de não estar em heresia (…), faço uma auto-atualização que me confere mais sentido. Digo que creio em Deus, em Jesus, no Espírito Santo e que… creio em Igreja. Uso deliberadamente este ‘em’ (em vez de ‘na’), para sublinhar que a Igreja é o lugar onde me situo para viver as crenças vitais na trindade. Esta pertença assim dita não me desmobiliza e penso poder até evitar a idolatria institucional acrítica ou o “picar o ponto” num dinamismo desresponsabilizante. Pelo contrário, diria, pelo menos em desejo, quero trazer à minha relação com a Igreja certa ontologia e, por isso, ser Igreja, encoraja-me neste dom de ser um ordinário batizado. E se a Igreja é o lugar onde creio, se vivo em Igreja, esta é a Igreja de todos os que nela caminham e, por isso, é a Igreja dos pobres, que vivem em comunidade e celebram a alegria de se quererem partilhar, partir, comungar, ser pão para os outros… A Igreja será também o lugar onde a caridade aos mais pobres se exerce coletiva e comunitariamente. Se a salvação espiritual não é um caminho solitário, é o povo de Deus que reza “Pai nosso” e não “Pai meu” que dá pleno sentido à Igreja e, portanto, ser Igreja é co-laborar em conjunto no alívio dos mais necessitados. Somos ainda, tipicamente, “fraquinhos” cristãos de hospital de campanha, comparados com a mobilização celebrativa e outros apelos e manifestações…
A constatação de que eu próprio sou um medíocre e tensional praticante da caridade, leva-me ao desejo de uma relação mais humilde (mais verdadeira) e mais obediente (capaz de escutar outras sensibilidades) com esta Igreja que sou. Com efeito, querendo manter a lucidez crítica, não posso deixar de ser moderado e misericordioso no olhar que estendo aquilo que falta à Igreja (…que sou, repito). A este nível da encarnação da pobreza a que somos chamados, somos também todos… pobres. Desejo evitar certo tom de protesto obsessivo pelo caminho que falta e dar eu próprio os passos possíveis, denunciar construtivamente, dar sugestões alavancadoras, fazer provocações que mobilizem…
6- Opção preferencial pelos pobres: uma escatologia
Não haverá outro devir mais livre e pleno, para cada um de nós, do que aquele de ser pobre e de preferir os pobres. No seu sentido mais amplo, ser pobre é ser de mãos vazias. Ser pobre é ser livre e livre para a doação. Há que equilibrar a aspiração à pobreza espiritual mais profunda (que só se consegue, me parece, com recolhimento e oração) com a atenção concreta e quotidiana aos francamente mais próximos.
Há pobres mais distantes, face aos quais algo podemos fazer mas cuja pobreza envolve complexidades enormes. Muitas vezes matam à fome as malhas políticas, militares, tribais, diplomáticas, etc. Por isto, estudar e depois exercer eticamente artes como o direito, a ciência, a economia, a medicina, a arte, as humanidades, a educação, a prática política, etc., podem e devem ser feitas com vista a minimizar a pobreza dos homens.
Estar sempre do lado dos pobres é o sítio da Igreja e, por isso, de cada um de nós. A opção preferencial pelos pobres tem de ser concreta. Tanto pode ser ir para um país distante em missão como comprar preferencialmente marcas de produtos com selos de garantia de não exploração, mesmo que mais caros. Pode ser preferir desenvolver um projeto de investigação científica que otimiza medicamentos anti-maláricos em vez de apostar na ciência que crie novos produtos tecnológicos que só sirvam para alimentar superficialidades do ocidente.
Vale a pena ser Igreja para ser pobre porque só o pobre pode partilhar. A sensibilidade à pobreza e a solidariedade são mandatos humanistas e universais. As metodologias são diferentes e o nosso distintivo, apesar de alguma luta, é o primado da aceitação da vida como um dom. Estar em missão para alimentar a prontidão de acolher a riqueza do tempo, do espaço e do outro é um privilégio. É o que nos espera, esta disposição para coisa nenhuma e, assim, para tudo. A pobreza é para erradicar. Tocaremos amanhã esta plenitude que, agora, aperitivamos: já… mas ainda não!
Uma declaração de interesses prévia que, mais do que me colocar em ângulo menos suspeito, previna eventuais retiradas de frases ou ideias fora de contexto, que pervertam a mensagem que gostava de passar: como cristão, faz-me falta celebrar a eucaristia em comunidade; reconheço na celebração da missa uma oportunidade notável de congregação de fé; não entendo, nesta linha, que esta “quarentena missal” deva implicar qualquer desvalorização da eucaristia (pelo contrário…). Porém, algumas perguntas se me colocam…
1- Desejar e agradecer o regresso à missa com que horizontes?
Posso estar a exagerar mas, nem sei bem porquê, imaginei uma festa de alguns em agradecimento a Deus pelo regresso da missa, como os antigos dançavam, aplacando a ira dos deuses tiranos e mandatórios, em festa pela vinda da chuva… Em todo este processo de confinamento, como de resto já era na nossa vida, há desafios notáveis para resignificar constantemente as nossas imagens de Deus. Não sei se levamos a sério o risco de Deus em nós, na nossa liberdade e no pulsar do mundo, o Seu mistério amoroso de omnitransformação, que recusa caprichosamente marionetar o tempo e o espaço. Até admito a mim próprio agradecer a Deus o regresso da missa, quando chegar o tempo oportuno, em segurança sanitária e na mais elementar alteridade humana… e por isso também cristã. Mas, no meu caso, sinto um apelo a agradecer-Lhe este tempo que estou a viver, de desafio para um crescimento, pessoal e comunitário, numa Igreja em caminho. O que teve, tem e terá a dizer-nos esta experiência de não poder celebrar a partilha de um pão tão especial?
2- A ausência da missa é crucifixão?
Temo certa visão e vivência destas privações sacramentais como cruzes flagelantes a suportar. Não serão antes oportunidades de re-velar um sempre novo Cristo que espreita? De rever a nossa posição mais ou menos rotineira face às potencialidades dos sacramentos, que importa serem sempre novos? O Evangelho é Boa Nova e este Espírito novo que sopra não meteu férias com medo do vírus. Está aí, a soprar e a inspirar, a provocar e a co-mover. Voltar ao que era é sempre curto, recuar apenas não é o estilo de Jesus. Não será a privação sacramental, mais do que uma crucifixão, uma Páscoa que se adivinha para um novo renascimento? Não será claro o convite, mais do que a saudade pela saudade, a saber estar numa Igreja vazia (como o Papa bem mostrou)?
3- Haverá espaço para a diversidade celebrativa e para a Igreja doméstica?
O que nos tem trazido este tempo, enquanto crentes Católicos Romanos, é um desafio concentrado de provocação nascida há seis décadas de dentro da nossa Igreja, fruto de um fecundo discernimento eclesial de síntese de toda a tradição: sermos Povo de Deus em caminho. Os convites a certa desclericalização estão aí para quem os quiser ver e viver. Nasceram em cada casa, como cogumelos, verdadeiras igrejas domésticas, capazes de viver e celebrar Cristo no seu seio. Reinventaram-se rituais plenos de significado e de sentidos entre os mais próximos de cada habitação. A Alegria do Evangelho pode verter-se no cuidado da Casa Comum, em cada lar, precisamente através do tesouro que é a Família (e varro uma tríada de importantes escritos de Francisco…). Temos ainda algum caminho para andar mas estão a ser muitas as sementes colocadas na terra para gerarem, finalmente, batizados que, por o serem, são sacerdotes por Cristo, com Cristo e em Cristo…
4- Será de rever os ‘mandamentos da Igreja’?
A expressão ‘mandamentos da Igreja’ nunca foi da minha simpatia. Entendo melhor os mandamentos de Deus mas, mesmo esses, potenciados pela mediação eclesial, são tateamentos comunitários e pessoais muito complexos. Sempre preferi propostas a imposições. E é aqui que pode colocar-se em cima da mesa uma nova pedagogia eclesial: mais centrada na proposta a batizados responsáveis do que na deliberação dirigista. A exigência cristã é evidente mas ela há-de ser subida (ou descida?…) sempre e apenas se, for andaimada pela consciência pessoal exigente e interiorizada. Nos rituais como na moral, a fasquia não pode rastejar, mas pode se proposta em vez de imposta, porque assim fazia Cristo. Poderão dizer-me que sem regras e normativos entra a balda e a excessiva personalização. Não nego esse risco mas prefiro corrê-lo em detrimento do seguidismo cego e forçado. Queremos, será que queremos, que alguém vá à missa porque tem que ir? Não merece aquele altar da radical partilha do pão gente mais automotivada?
Há uma tensão evidente entre a riqueza da interioridade e a banalização da exterioridade, onde se podem inserir certos rituais, também religiosos. Este tempo de privação sacramental é uma clara purga de exterioridades, um convite à interioridade com Cristo, na nossa profundidade pessoal e coletiva, brotando da nossa sede e da interfragildade, que já existia, mas que o covid19 enalteceu. Todos sabemos do perigo da exterioridade das cerimónias e, portanto, da sua possível esterilidade. Ir à missa e ficar na mesma, sem crescimento interior, é o que não queremos nem cremos, como crentes em caminho.
5- Só uma Igreja que caminha com os mais pobres nos pode galvanizar
Só a Igreja dos pobres nos pode interessar. O Papa Francisco, a começar pelo nome que se deu, anda a semear. Tudo o que esta pandemia enalteceu foi o grito dos mais frágeis, que convocou universalmente todos os homens de boa vontade no planeta inteiro. Se somos todos frágeis, se somos todos buscadores, se somos todos pobres, pois a Igreja é dos pobres. Enquanto houver gente a sofrer, sem pão e sem amor, será tal a nossa inquietação aguda, a nossa mobilização central. A missa, é para nos fazer sair da missa em missão com os mais pobres, onde nos incluímos. Esta pandemia trouxe para a ribalta a atenção aos últimos, aos mais velhos, aos dos países mais vulneráveis, aos que clamam. O pão que se parte e reparte na missa é a fragmentação que nos parte o coração mas que, ao mesmo tempo, nos fascina pela agudeza da dádiva radical. É a celebração que nos impele a acudir aos mais necessitados. Essa, é, sem dúvida, a saudade do futuro que nos falta!
Não me sai da cabeça esse cartoon engraçado que circula, com qualquer coisa deste tipo: um globo em covid19 que tem um diabinho a dizer “fechei-te as igrejas todas” e um “Deus” que responde “eu abri uma igreja em cada casa”. Dará que pensar sobre a revalorização da Igreja doméstica; certo retorno às primeiras comunidades; recuperação de uma dimensão mais interiorizada da vida espiritual. Criticaremos uma civilização que queira apenas e nostalgicamente voltar a ‘uma vida normal’ (o que será isso?). Mas teremos de refletir, também, sobre a Igreja (povo de Deus em caminho, atento aos sinais dos tempos…). Compreende-se a saudade sacramental mas, assim como será curto o mundo voltar ao que era, a Igreja será pouco evangélica (portadora de novidade) se se limitar a voltar a ser o que era…
Em 1953 há um gesto simbólico da Igreja muito curioso: o Padre Leonard Feeney é excomungado da Igreja (excluído) por recusar a ideia muito própria do Concílio Vaticano II, segundo a qual “há salvação fora da Igreja”. As consequências são simples e podem reproduzir-se assim: “não há lugar na Igreja Católica Romana para quem entenda que não há salvação fora da Igreja”…
A evolução da religião é compreensivelmente lenta. Observe-se o caso da Igreja Católica: com cerca de dois mil anos de história, milhões de fiéis e, actualmente, cerca de meio milhão de padres e religiosos, tem uma inércia própria. A inércia, na sua raiz científica, relaciona-se com uma tendência que todos os corpos possuem para manter o seu estado (de movimento ou repouso). Quanto maior massa, maior inércia… Por outro lado, estes anos de história e tradição e este volume de pessoas e de conhecimentos, congregam uma sabedoria e um património que dão consistência e corpo à cultura humana, podendo ajudar a humanidade a ter Deus como referência fundamental.
Na liturgia católica romana deste fim de semana escuta-se Is 2, 1-5
«O Senhor chama todos os povos à paz eterna do reino de Deus»
Em início de Advento, colocamo-nos na aprendizagem da esperança, na ‘fila’ de quem quer crescer. A expressão do livro de Isaías acentua a tónica numa chamada (numa ek-klesia): “O Senhor chama todos os povos à paz eterna do reino de Deus”. Observe-se a palavra “todos”, um aperitivo judaico, potenciado no cristianismo, que contempla a universalidade (a catolicidade) da proposta de encontro e comunhão. Um incentivo ecuménico e inter-religioso, a bem dizer. Que a ritualização e a pertença eclesial neste Advento sejam sempre potenciadas, resignificadas e vividas, tão só (…), para tentarmos ser melhores pessoas para o reino de Deus.
A crítica, por vezes feita, de que certos ambientes inacianos funcionam por grupinhos, por isso mesmo fechados e impenetráveis deve merecer muita atenção. Há muitos nós que convém desatar, entre elites e elitismos, grupos e grupinhos, estilos e mesmismos.
J. C. Paiva, Tensão entre identidade e abertura: notas para (tentar) um equilíbrio. Site PontoSJ. 2 de julho de 2019. Disponível em
Tensão entre identidade e abertura: notas para (tentar) um equilíbrio
UNIDADE E DIVERSIDADE
Há uma certa tensão entre diferentes carismas e formas de ser em Igreja. Não é apenas próprio dos nossos dias mas bem patente ao longo de toda a história. Em conversas mais ou menos explícitas, mais ou menos públicas, emergem comentários, tipicamente irónicos, sobre um qualquer fechamento deste ou daquele grupo eclesial.
Arrumando para mim próprio algumas ideias, e partindo da espiritualidade inaciana vivida na Comunidade de Vida Cristã (CVX), que se alimenta da mesma fonte dos jesuítas, gostaria de clarificar alguns pontos de vista:
1- A existência de diferentes carismas na Igreja é, definitivamente, uma riqueza. A unidade que se procura, mandato evangélico, aliás, é sempre uma unidade na diversidade. Quando se confunde unidade com uniformidade, empobrece-se a visão, a vida e o horizonte da Igreja. O Papa Francisco sublinha bem este aspeto quando, em EG 236, nos diz que “o modelo [da Igreja] é o poliedro, que reflecte a confluência de todas as partes que nele mantêm a sua originalidade”.
2- Unidade e diversidade constituem sempre uma tensão difícil de gerir. Se a uniformidade é uma caricatura da unidade, a ausência de pontes e tentativas de diálogo e colaboração carismáticos são também, por um outro lado, um não caminho.
3- No caso de algumas dinâmicas associadas à Companhia de Jesus, há acusações de elitismo. É sempre bom notar que apontamentos de elite, no sentido de procurar ‘o mais’, são virtuosos. Formação exigente e profundidade, por exemplo, quer para leigos quer para consagrados, são inegociáveis na espiritualidade inaciana. Já o elitismo, que, escrevendo curto e grosso, se pode confundir com ‘ter a mania que se é bom’, é inequivocamente desinteressante. Notar que algumas das ditas acusações de elitismo podem ser injustas e nascer do preconceito ou da simples agenda de bombardear, como arma de arremesso.
4- Outro apontar de dedo que pode merecer reflexão autocrítica é um certofechamento. Aqui, a atenção deve ser muito cuidada: uma Igreja apostólica, mais ainda neste tempo em que se refunda como estando ‘em saída’, não pode senão ser porosa e aberta. Assim, sem secretismos nem sectarismos, nem esquemas ocultos, se pode pautar cada carisma.
5- Mas não elitismo e abertura não implicam um mesmismo descoloridonem a ausência de exigências e esquemas próprios de cada caminho. A CVX, em particular, que se tem vindo a estabelecer num processo de afirmação vocacional na Igreja, tem uma vinculação aos Exercícios Espirituais, a um sentido de compromisso e a uma integração regional, nacional e internacional, que ultrapassa o pequeno grupo, de que não pode prescindir. Seria ingénuo admitir que, para ser aberta, a CVX deveria ser o espaço de toda a gente ou mesmo de toda a gente laica de espiritualidade inaciana. Há muitos caminhos, como sabemos, e o importante é cada um estar onde é livremente fecundo, sempre muito consciente de que se não é melhor que ninguém, apenas diferente.
6- A porosidade da CVX, por exemplo, enquanto carisma que caminha na procura comunitária de uma síntese entre a oração e a vida, revela-se no quotidiano dos seus membros e na abertura radical ao outro, em tudo o que se vive, em tudo aquilo em que se participa, dentro ou fora da Igreja.
7- Quando se comenta que os jesuítas (ou a CVX, equivalentemente) deveriam ajudar mais nas paróquias, ou colaborar mais com certos movimentos, ocorre-me o seguinte:
a) seria discutível participar em colaborações intercarismáticas ou pluriparoquiais apenas por motivos estéticos ou moralistas (porque deve ser…), se isso comprometer a eficácia (não a estatística mas a essencial, isto é, a eficácia da fecundidade...);
b) a deslocalização extrageográfica das paróquias é desde logo um argumento muito dinâmico e complexo (e que tem merecido reflexões profundas);
c) o diálogo entre os diversos movimentos e a eventual colaboração aqui e ali são de assinalar, mas não podemos esquecer que há estilos próprios de planear, empreender e avaliar, que resultam em modos específicos de cada carisma e que são precisamente a riqueza da Igreja, como na proveitosa metáfora das diferentes flores de um jardim;
d) indo um pouco mais longe, pessoalmente, quando me envolvo em alguns desafios de ordem eclesial, tento procurar pessoas com quem tenho afinidade de estilo e certa compatibilidade conceptual e de ação. O importante, mais uma vez, é que não me ache superior a ninguém…
e) nada do que está escrito acima desincentiva a que as pessoas de espiritualidade inaciana (jesuítas incluídos) participem e colaborem com múltiplas atividades fora do seu carisma, assim tenham agenda, disponibilidade e sentido de poderem ser úteis, avaliando se não caem em dispersões discutíveis, bem entendido. Dizer que sim porque sim, ou dizer que sim por cerimónia de evitar dizer que não, nunca foi recomendável… É preciso, bem entendido, discernimento apostólico, procurando eleger o que mais serve, em cada desafio.
8- A crítica, por vezes feita, de que certos ambientes inacianos funcionam por grupinhos, por isso mesmo fechados e impenetráveis deve merecer muita atenção. Há muitos nós que convém desatar, entre elites e elitismos, grupos e grupinhos, estilos e mesmismos. Se num espaço inaciano (CVX, centro universitário, evento, etc.) há uma constância uniforme de modos de falar, trajes, nomes de família e outras exterioridades, os alarmes devem tocar. Aí sim, definitivamente, cheira a gente que se não deixa tocar e interpenetrar e que, porventura, se acha melhor do que alguém… Aí, não há Igreja!
A Igreja, no seu confronto autocrítico sistemático, tem de se atravessar constantemente na pergunta: estamos a ser instrumento de sinal eficaz de Cristo para o mundo?
Na liturgia católica romana deste fim de semana escuta-se 1 Cor 12, 12-14.27
«Na verdade, todos nós – judeus e gregos, escravos e homens livres – fomos baptizados num só Espírito para constituirmos um só corpo»
A carta de Paulo aos Coríntios pode ajudar-nos a valorizar os nossos sentidos de pertença, seja a uma Igreja, seja a uma família, seja a uma outra organização. Há um primeiro sentido de convite à universalidade e abertura a todos (judeus e gregos, poderiam ter hoje outros nomes, como “betinhos” e “rurais”, por exemplo). A procura da unidade (um só corpo) na diversidade, convém tomar consciência, tem um preço e um custo. Mas tal procura de sentido de corpo (e um só corpo!) pode ser um novo sentido também pessoal e existencial. Ser sozinho, sem corpo e sem pertença, pode ser quase não ser…