Definitivamente, a unidade faz-se na diversidade. O caminho será sempre pluri-identitário. O monocronismo uniformista pode ser tentador mas não subtrai apenas à estética do belo pluriforme, acabará também por esbarrar com a liberdade sagrada de cada ser…
O diálogo pode ser um verdadeiro encontro com a plenitude, uma teofania. Talvez por isso, também por isso, o diálogo inter-religioso não é um apêndice facultativo da teologia que temos à nossa mercê: esse diálogo é, verdadeiramente, um fecundíssimo lugar teológico!
Embalado pela quase
perfeita analogia de que a espiritualidade é o vinho e as religiões são os
copos, a gestão apostólica, não sendo displicente, é da ordem do copo… Todo o gesto apostólico,
portanto, deverá apontar para o verdadeiramente espiritual. Reconheço a
utilidade do copo, mas convém notar, em certa moderação religiosa, que vinho
sem copo tem valor enquanto copo sem vinho é vazio estéril e infecundo…
Tropecei algures, não sei onde, com uma expressão feliz de crítica religiosa: “os empanturrados”. Olhando à minha volta e até na minha história pessoal, dentro da Igreja, reconheço com nitidez estas insinuações.
A dose, a intensidade e a colocação da “coisa religiosa” merece constante resignificação na vida de cada crente. Sem uma lucidez crítica apurada, facilmente caímos em dois lugares extremos que representam, ambos, um não encontro: ou nos desiludimos, ou nos empanturramos.
Convoco duas analogias que me foram trazidas pelo jesuíta Javier Melloni, não sei se em segunda, se em primeira mão, para explicitar a minha colocação: a analogia do copo e do vinho e a analogia do caminho e do veículo.
O copo e o vinho. Segundo esta analogia, o essencial espiritual representa o vinho. Note-se que o vinho é bom, perfumado, saboroso, valioso e dom (fruto do trabalho, também…). As religiões seriam o copo, por onde se pode tomar o vinho, com valor adicional de eficácia. Os copos, porém, valem pelo potencial de conter e partilhar o vinho, não por si. São diversos nas formas, feitios, cores, mas apresentam uma função em si própria louvável, que é a de serem disponbilizadores de vinho. Há uma certeza humilde que o copo deveria ter (perdoe-se-me a personificação): o copo não é nem a fonte nem o vinho!
O caminho e o veículo. Nesta analogia, o caminho, desde logo comum e não exclusivo de ninguém, é o trilho onde se pode progredir. Este caminho é feito de estações de encontro e constitui, em si mesmo, também teleologicamente, o Encontro. O veículo, mais uma vez com potencias de utilidade e favorecimento, ajuda a caminhar. As religiões, bem entendido, são veículo e não são caminho, não lhes cabendo, portanto, qualquer espaço nem tribal nem endogâmico. Se convém cuidar do veículo? Sim, fazer as revisões, estimar e não estragar desnecessariamente. Mudar o óleo, evitar a corrosão. Mas que se cuide do veículo para ele andar e, já agora, de forma inclusiva, para ser o veículo do nós e não o meu veículo. Todos conhecemos os endeusadores de automóveis, às vezes de coleção: estão polidos, expostos e protegidos… mas progridem pouco, valendo mais para serem vistos do que para caminhar. Há também carros que optaram por se preservar das agressões externas, quiseram ser defendidos e resguardados. Ficaram parados, não fazem caminho e mais parecem sucata…
Ambos os cenários analógicos, como se vê, apresentam forte potencial ecuménico e inter-religioso mas são, simultaneamente, as estradas da própria identidade cristã, cuja marca tem em si própria a porosidade radical de quem não tem fronteiras. Quem coloca o tónus no copo escolhe lutar pela sua posse, enquanto o vinho é diálogo. Quem se polariza no veículo foca-se em defender(-se), enquanto o caminho é rasgada oferta.
Na linguagem analógica acima podemos perceber bem os dois extremos típicos já aludidos: os que com alguma ingenuidade optam por aceder ao vinho sem copo ou que caminham sem veículo (concedendo-se que algum vinho beberão e alguns passos andarão); e os que, em reduto fundamentalista, que não é nem fundamental nem radical, endeusam os copos e esquecem o vinho, puxam o lustro ao veículo, mas mantem-no estático.
O cerne do equívoco prende-se com a clarificação do que é central e do que é periférico. Com alguma clareza, observo na lide religiosa quem toma como central as formas, as normas, as roupagens e as exterioridades. Essa (pesudo)segurança fecha, enrijece e, não raras vezes, é bafienta a até apodrece. Se, pelo contrário, o centro for a fé, a crença vivida num Deus que só ama e cria e a misericórdia com que, também por nós, se verte no mundo, resulta em abertura, respiro, leveza… vinho e caminho.
O contrário do indesejável moralismo não é a amoralidade. Os que trabalham para se centrar e recentrar atenta e comunitariamente no núcleo amoroso da fé não desprezam as roupas com que nos precisamos de vestir, mas estão conscientes da secundariedade das formas, dos ritos e dos normativos. Estes só servem se colorirem o fundamento primeiro do amor a Deus e ao próximo. Jesus de Nazaré parece ser, a este nível, inspirador…
Perguntei-me, por simetria, se haveria “empanturrados de Deus”. A minha conclusão é que Deus não deixa que d’Ele nos empanturremos. Há um lado na relação com a transcendência que é da ordem do “quanto mais melhor”. Mas esse salto místico, paradoxalmente, deixa-nos sempre não possuidores e, pelo contrário, expostos com entusiasmo à novidade e à alegria interior, com as suas consequências relacionais soltas e promotoras. Mais ainda, essa overdose com o Totalmente Outro, dentro de nós e em toda a parte, alimenta-se da não palavra, num silêncio que não ocupa espaço de sobrelotação. A nossa religiosidade, portanto, ou serve essa mística aberta vivida… ou empanturra…
Admito que, dos vários diálogos religiosos na agenda, aquele com o Islão seja dos mais desafiantes e complexos. Reconhecendo essas dificuldades, não poderei deixar de ser um apostante no diálogo universal inter-religioso e, por isso, também com o Islão. Não me vem esta convicção apenas do que leio e elaboro teoricamente. Tive o previlégio de viver três semanas a servir uma comunidade de mais de quarenta muçulmanos em fuga da pobreza. Impressionou-me como a fé e a esperança destes homens, de olhos postos em Deus, em Maomé ou algures nos céus sem nome, os fez superar e achar que era possível trilhar aquele caminho tão difícil, que não é ainda terra de mel (pode até nem ser) mas que precisa de pouco para ser melhor do que o pouco que tinham e de onde fugiram…
Compreendem-se criticamente as atitudes mais fechadas e identitárias de alguns católicos romanos: o fechado, rígido e militante é aparentemente seguro… Mas, “nas coisas do alto (…)”, não há lugar para sonhos baixos, instalados e mesquinhos. A identidade religiosa afirma-se no diálogo radical, mimetizando, aliás, um Jesus Cristo que frequentava lugares duvidosos e tinha pouco de formalidade religiosa. Também do ponto de vista da identidade religiosa nos havemos de render ao radical diálogo, iluminado pelo convite bíblico mais libertador: é preciso perder para ganhar…
Diz bem Javier Melloni, antropólogo jesuíta contemporâneo, que depois de todos os positivismos e outros ‘ismos’ de fechamento ao transcendente, vivemos um tempo novo de ressurgimento da ‘sede espiritual’. Mas este sede, num mundo globalizado, só tem água na confluência de síntese da pluralidade cultural e da diversidade religiosa…
A plenitude, que não é a totalidade, não pode ser possuída. É próprio da plenitude não se fechar nem se conter, antes irradiar. Nesta linha, as religiões terão grande ‘trabalho de casa’ para fazer, pois, não raras vezes, se entendem a si próprias e se vivem como um monpólio, que nunca é nem será seu…