As razões da minha fé
Às vezes penso que só creio porque não sei não crer.
De facto, para começar esta reflexão sobre “as razões da minha fé“, devo assumir as minhas fragilidades e a minha carência. Daqui nasceu (e nasce) uma procura inacabada.
Ter fé, acreditar, é apoiar-me num Deus que acolhe e dá sentido maior à minha vida. Mas que Deus é este? Deus é também o indizível e há limitações semânticas para o alcançar com palavras. As “razões da minha fé” (aspas deliberadas, porque são mais do que razões), encontram-se na história e na minha história, no tempo que passa e no futuro que saboreio por acreditar. Este futuro com sentido dá luz maior ao meu presente. Viver acreditando, usando linguagem de uma
geração à frente da minha, é curtido à brava.
Acho que consigo mergulhar no passado e no meu passado, vasculhando algumas das raízes do meu acreditar. Se a fé e a vida se jogam no tabuleiro da cabeça, do coração e das mãos, metáfora para as dimensões racional, afectiva e de acção, no meu caso, foram as mãos que “salvaram”. Por volta dos meus dezassete anos entrei em grande crise existencial, com perguntas complexas sobre mim, sobre o mundo e sobre as minhas relações com os outros e com o cosmos. Conversei com muitos, comigo próprio, escrevi e procurei. Não alcancei pensando. Tive luz particular quando um dia de manhã, meio desesperado na procura, decidi aproximar-me de alguém excluído, dando-lhe a minha compreensão, o meu tempo, as minhas mãos. Fixo esta experiência com a aproximação possível a uma “definição” de Deus: Alguém que se revela no amor, na relação. Deus é amor. Eu precisei de outros para saborear o sentido de acreditar. Certo é que comecei a viver como se o amor fosse o filão de tudo, o antes, o durante e o depois da minha história e da humanidade. E a minha vida ganhou sabor, intensidade e coerência.
As referências inspiradoras para esta mudança foram-me dadas pela Igreja, que me “falou” de Alguém que vivera cerca de dois mil anos a esta parte, nascera numa manjedoura e marcara a história (com as suas mãos), vivendo e propondo um estilo de vida simples, polarizado num incondicional amor a um Deus-amor, que se manifesta paradoxalmente numa vitória da vida sobre o sofrimento e a morte. Jesus Cristo teve amigos que foram seus discípulos e depois apóstolos de uma Igreja que tomou raízes no tempo e chegou pelo tempo até mim. Devo dizer que nem sempre a Igreja me apresentou (ou eu não vi) uma imagem de Deus
positiva, coerente e possível. Mas no essencial fui conseguindo apoiar-me nos aspectos mais urgentes da mensagem, redescobrindo novidades e aproximando-me dos estilos e linguagens mais sintonizados com a minha procura. Sem perder o sentido crítico, fui aderindo e comprometendo-me com a Igreja de Jesus Cristo, neste tempo e neste contexto cultural que sou. Acabava por ir sendo, vestido com os meus limites, um vivente, um discípulo e um apóstolo de Jesus. O compromisso libertara-me. Mas há um jogo de risco no acreditar, que se repete todos os dias. Digo a mim próprio, muitas vezes, que inventei e invento um Deus que não consigo “agarrar”, vivo como se Ele existisse e descubro, com as mãos, que o que eu invento, afinal, existe e sempre lá esteve, pacientemente à espera, de “graça”…
Não se tendo alcançado a fé pela razão, não significa isso, de forma alguma, que a fé seja irracional. A edificação do meu acreditar centrou-se na vida e numa entrega essencialmente afectiva onde a racionalidade, sempre presente, se deixou colocar ao serviço da causa maior, apriorística e essencial do amor. Aí posso admitir uma limitação em relação a outros amigos não crentes que, numa primeira análise, poderão ter uma maior “liberdade” de pensamento (dou de barato que, para alguns, estou viciado à partida): por necessidade, por limitação, por carência, por experiência de sentido, deixei-me embriagar pela convicção, pelo risco, pela ideia de existir um Deus de amor que está antes, durante e depois de tudo. Viver assim é bom e eu rendi-me!
Utilizo a razão e a inteligência para lubrificar as minhas buscas e relações. Com todos os pensamentos “embrulho” sistemicamente o meu coração e as minhas mãos no tempo que passa. Este Deus (de amor, como preciso de insistir) é de gerúndio: vai-se revelando, sem nunca se poder possuir. Há uma dinâmica de mistério, de incompletude. Deus é “já” mas sempre “ainda não”. Mas este futuro por descobrir dá um sabor interessante à minha liberdade.
Dilemas como a teodiceia (a equação de Espinosa e de tantos outros) são desafios constantes à minha razão. Como entender um Deus omnipotente e associado a amor, que, podendo poupar os homens, permite o sofrimento e a morte, aparentemente errática e sem sentido. Talvez não seja para entender mas para ir entendendo, ou talvez para ir vivendo. Talvez Deus seja “omni-impotente”, expondo-se frágil e não impondo-se poderoso. Talvez este dilema encerre como um tesouro o melhor formato da nossa liberdade. Talvez outras coisas que posso descobrir…
A Igreja, que sou eu e os outros e não só nem essencialmente uma instituição, tem um potencial para ser fonte de Deus. Nem sempre o foi, nem sempre o é. Mas Deus, convém dizê-lo em explicitação ecuménica, é maior do que a Igreja. Tenho para mim muito claro, que na suposição imagética da barca de Gil Vicente para entrar no paraíso, ninguém me perguntará, para escolher o meu lugar na vida eterna, “a quantas missinhas fui”. O Evangelho, aliás, já estabeleceu “as perguntas”: tive fome e deste-me de comer, tive sede e deste-me de beber… (Mt 25, 34-36). Esta pergunta, claro está, é para responder com a vida do agora e do aqui. Os aperitivos do paraíso jogam-se desde já e o “prémio” (como o nosso “inferno”) são deste tempo, naturalmente. O que vem depois é a consequência natural das escolhas e das apostas do nosso tempo presente…e sobre isso a misericórdia de Deus pode ter universais e desconcertantes surpresas. Eu vou à missa porque acredito e experimento que essa celebração da paixão de Jesus alimenta, em mim e nos outros com quem comungo a fé, a “loucura” de viver o Evangelho.
O sonho de Deus é uma festa. Uma festa que se vai fazendo mas que está por universalizar. Sinto (diz-se ser uma graça – dada gratuitamente) que eu, como cada homem, somos feitos à imagem e semelhança de Deus. Podemos tomar como nosso o Seu sonho de festa. A nossa missão é encontrar sentido em ser pedras de uma construção comum, um mundo melhor. Nunca ninguém fez boa festa sozinho. Por isto Deus não tem mãos e as minhas, as tuas e as de todos, são as Suas mãos. É esta a “razão” da minha fé!
texto de 2015, publicado em livro de testemunhos