fragmentados sedentos de Páscoa
A Ressurreição é relação. É Páscoa. É passagem, é ligação que está a acontecer. É ponte entre morte e vida, é a nossa inteireza, nós que somos fragmentados, mas que temos desejo de unidade…
A Ressurreição é relação. É Páscoa. É passagem, é ligação que está a acontecer. É ponte entre morte e vida, é a nossa inteireza, nós que somos fragmentados, mas que temos desejo de unidade…
Em sábado de Semana Santa há um convite para acolher as trevas, o tempo de que precisamos para chamar ao sofrimento e à morte os nomes que são esses mesmos…
Uma oportunidade de visitar o nosso túmulo, as nossas próprias sombras. Nenhuma vida, muito menos uma vida nova, brotará da fuga daquilo que somos. Portanto, desde já afagados pela companhia duma ressurreição garantida, saibamos visitar a realidade radicalmente frágil que somos. Só conhecendo-a e aceitando-a, poderemos ressuscitar, num amanhã que se antecipa.
Lava pés: o papa, os cardeais, os padres, representando Jesus, lavam os pés dos outros.
Este era um sinal de serviço, de escravidão. Quem lavava os pés eram os escravos…
Duas coisas muito importantes nesta passagem:
1- O ensinamento mais comum é sobre a importância de servir, de servir o outro e não de viver a vida a ser servido mas a servir. Quando nos
distraímos queremos ser príncipes e princesas, mas a verdadeira liberdade está em sermos ‘escravos’ dos outros, em amar os outros.
2- Jesus disse a Pedro, que não queria que o Mestre lhe lavasse os pés:”o que te faço, não compreenderás agora mas depois”. Esta frase pode ajudar-nos muito
nas dúvidas de fé (eu, às vezes – também tu? – pergunto-me se Deus existe mesmo…). É que Deus nem sempre se mostra óbvio e nem sempre
se compreende. Mas qual a novidade desta passagem? É que Deus se entende, se comunica, em Jesus, quando Ele nos lava os pés. Isto é, a chave de leitura da fé é o serviço de Deus e de tantas pessoas que nos amam, que nos servem. Só se tem fé quando se deixa que Deus nos lave os pés, nos mime, nos ame (muitas vezes através de outras pessoas, como amigos, Pais, padrinhos… oxalá…). Uma vez de ‘pés lavados’ com o amor de Deus, sentimos a missão de, também nós, sermos
‘lavadores de pés’, isto é, Cristãos.
“A casa do Pai tem muitas moradas” (Jo 14, 2) é uma cama bíblica que nos poderia descansar ainda mais. Rasga a unidade na diversidade e o valor sagrado e ímpar de cada um, na sacralidade do seu ser. Elcesialmente, abre portas a uma já tradicional mas sempre incompleta pluralidade teológica, assim como ampara a diversidade carismática e a congregação de um sem número de estilos…
Na liturgia católica romana deste fim de semana escuta-se Lc 22, 14-23, 56
«Tenho desejado ardentemente comer convosco esta Páscoa»
Em domingo de Ramos, os cristãos recordam o trajeto final da vida de Jesus, que antecede o fulcro da Sua entrega radical. O início do texto longo que hoje se medita nas celebrações poderia marcar toda a leitura da Páscoa: “Tenho desejado ardentemente comer convosco esta Páscoa”, isto é: falo-vos, vivo e ofereço-vos, a cada um de vós, um Deus que se quer relacionar, que quer estar, que se propõe “entranhável” na vida ordinária, no ‘comer’. Um Deus “comestível”, poderíamos dizer, numa linguagem tão ousada quanto eucarística…
NOTA: Este texto é repetido/ajustado a partir de evento já publicado neste blog anteriormente.
L1: Is 50, 4-7; Sal 21 (22), 8-9. 17-18a. 19-20. 23-24
L2: Filip 2, 6-11
Ev: Lc 22, 14 – 23, 56
Se houvesse um pulsar relacional, de dinamismo e tensão constantes, seria esse de “largar o outro”. É quando não respiramos isto nas relações humanas e, ao invés, agarramos o outro, desejando que ele fosse sabe-se lá o quê, que beliscamos a gratuitidade e a fecundidade do relacionamento…
Lawrence desenvolve a famosa tese não crente do “universe from nothing”. Mas o que será o nada para Lawrence? O nada físico? O nada filosófico? Flutuações quânticas? Para mim, talvez ignições de amor criativo…
Von Baltahsar sublinha a importância da Graça, “espetacular e despudorada”, nas suas palavras. A fé é sempre reconhecer um amor que já nos rodeia e habita.
Na liturgia católica romana deste fim de semana escuta-se Jo 8, 1-11
«Quem de entre vós estiver sem pecado atire a primeira pedra»
A história da mulher adúltera é das mais expressivas da vida de Jesus. Revela facetas da sabedoria cristã (desmontagem da cilada dos fariseus) e de grande misericórdia (“também eu não te condeno”). A analogia popular de que quando apontamos aos outros um dedo, são três dedos que se apontam a nós, pode ser convocada: todo o exercício critico pode ser feito com consciência autocrítica. Não julgarmos os outros sem estarmos atentos às nossas próprias fragilidades é um bom caminho para viver uma lucidez crítica misericordiosa.
NOTA: Este texto é repetido/ajustado a partir de evento já publicado anteriormente, neste blog.
L1: Is 43, 16-21; Sal 125 (126), 1-2ab. 2cd-3. 4-5. 6
L2: Filip 3, 8-14
Ev: Jo 8, 1-11
Paiva, J. C. (2022). Da invasão da Ucrânia: recados a mim mesmo… Site Ponto SJ, 21-03-2022.
Disponível aqui
Como muitos de nós, dei comigo absolutamente tomado pelos últimos acontecimentos na Ucrânia, na Europa, no mundo, em todos e em cada um de nós. Embora meio em choque, a quente, refleti e escrevi sobre o que me pareceu mais relevante na tensão entre a guerra e a esperança. Volvidas algumas semanas sobre a invasão, verto em escrita partilhada alguns recados a mim mesmo:
Informado mas recolhido
Cheguei a estar horas a fio preso à televisão. Foi uma reação natural mas cuja desintoxicação, ainda em curso, carece do meu trabalho. Hoje em dia, com resistência interior, imponho-me não ler mais do que alguns artigos de jornal por dia e tomar apenas um dos telejornais. Em chave autocrítica, o que eu perdi nos primeiros tempos foi a qualidade do tempo de recato e oração. Cheguei a quebrar alguns rituais de paragem e noto bem o preço que paguei, eu e alguns outros, que me suportaram mais hiperativo, mas ao mesmo tempo cansado, tenso, irritado e com menos rumo. Interpreto com naturalidade este desnorte: eu já sabia que a existência era contingente, que a crueldade pontuava, que nada era garantido, que a liberdade projetada na fé de Deus em nós tinha um preço. Mas aqui, tudo isto, que aparece em pequenas doses na nossa vida, está em formato do shot. Absorvido este excesso, sinto um apelo a uma qualquer pós-ressaca. Não tenho neste momento a meu cargo sistemático crianças e jovens em processo educativo. Sei bem, porém, a criatividade e a atenção que, nesta tensão entre a informação que traz a verdade incontornável e a moderação, há um desafiante discernimento.
Atuante mas contemplativo
Com uma razoável impulsividade, que certamente inclui bondade, mas que terá o seu quê de mecanismo de fuga e inquietação, envolvi-me com outras pessoas na mobilização de redes solidárias para o acolhimento de refugiados ucranianos. Compreendo-me a esta distância, mas sublinho a fragilidade maior neste caminho: não raras vezes, perdi a noção da positividade e do sentido. Tomado por certa urgência, real ou antecipada, o que me faltou e desejo retomar com mais força, é esse olhar que não prescinde do belo. E o horizonte contemplativo é parte não descartável, como aponta a metáfora evangélica de Marta e Maria. O fazedismo sempre foi tentação minha e notei-o exacerbado estes dias…
Generoso mas prudente
No contexto nacional, o processo de acolhimento de migrantes ucranianos é um misto generosidade, voluntarismo, emoção, eficácia, improviso, planeamento, racionalidade, ingenuidade, ação, coração, etc. À medida que o tempo passa, a tendência é para moderar e amparar os caminhos, tentando conferir sustentabilidade aos processos de acolhimento. Ao gesto generoso se deve somar o amparo jurídico, a tentativa de dar lastro institucional, o olhar e a concretude que dão futuro ao gesto de acolher. E tudo isto pede algum tempo. Nem sempre estive munido deste equilíbrio. Quando a emoção avulsa e certa pressa tomou conta das ocorrências, o processo fragilizou. Ir buscar gente à fronteira da Ucrânia sem contexto institucional, legal e sem avaliar as condições para o respetivo acolhimento, é o exemplo típico de alguma imprudência. Do ponto de vista pessoal será inspirador, nas ofertas de bens e vontades, contar armas, metáfora irónica neste contexto… Não convém também, como me aconteceu bastas vezes, alimentar autopressões mais ou menos morais, sobre o pouco que faço: a caridade, como a nossa fé, é sempre pequena… e há que conviver bem com isso. Quem se mete nestas coisas da solidariedade sabe que as surpresas acontecem, que a expetativa deve ser gerida (e principalmente baixada, até zero, no melhor dos sentidos). Por vezes, diante de joio que vinha no meio do trigo, cheguei a pensar “onde eu me meti, mais valia ter ficado no sofá”. É tentação pura, e o caminho, quando algo corre menos bem, é dar melhor e não deixar de dar.
Comunicante mas contido
Notei-me muito falador e pouco escutante. Em qualquer conversa, emito… e falo sobre a guerra. Digo-me otimista mas muito preocupado. Especulo, filosofo (baratamente…), adivinho futuros. Medos… Este é um dos aspetos que existia antes da guerra: sou um dos distraídos que despreza o ouvido em favor da boca. Recomendo a mim mesmo, principalmente agora, mais silêncio e mais escuta. E se gosto de falar (porque gosto), pois que espere pelas perguntas dos outros. Meu jejum mais preciso é o da palavra.
Colhido pelo facto mas aberto ao quotidiano
Perante o compreensível mergulho na realidade que nos engole, é muito importante ir retomando alguns gestos. Sem tal significar distração ou anestesia, a vida continua e isso é uma das respostas à brutalidade deste tempo. Abandonei durante três semanas o cuidado da horta e a remoção das daninhas de hoje fez-me refletir com algum sentido autocrítico. A natureza ensina…
Realista mas esperançado
Há desafios neste cenário, nos planos das ideias e da ação, que são duma complexidade extrema. Quando analogicamente penso num matulão numa escola em bulling violento ativo, e na forma como eu, se pudesse, o travaria (usando força, bem entendido), fico partido diante da convicção de não responder à guerra com a guerra e, ao mesmo tempo, sensível ao justo pragmatismo de uma paz mundial (ainda) armada. O que fui vivendo nestes tempos, em dança de moções, levou-me variadas vezes aquilo a que poderia chamar recomeços amorosos. Recordo com inspiração as máximas de Santa Teresa (mais contemplativa) ou de Teresa de Calcutá (mais ativa, mas mística nos seus desertos), sempre apontando para a grande pequenez do amor. Nas guerras maiores, o elixir é o mesmo das guerras menores: salvar-me-á sempre, a mim e a todos, o amor que falta. O amor que somos chamados a derramar no espaço e no tempo, também e principalmente neste instante incerto.