Paiva, J. C. (2022). Da invasão da Ucrânia: recados a mim mesmo… Site Ponto SJ, 21-03-2022.
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Como muitos de nós, dei comigo absolutamente tomado pelos últimos acontecimentos na Ucrânia, na Europa, no mundo, em todos e em cada um de nós. Embora meio em choque, a quente, refleti e escrevi sobre o que me pareceu mais relevante na tensão entre a guerra e a esperança. Volvidas algumas semanas sobre a invasão, verto em escrita partilhada alguns recados a mim mesmo:
Informado mas recolhido
Cheguei a estar horas a fio preso à televisão. Foi uma reação natural mas cuja desintoxicação, ainda em curso, carece do meu trabalho. Hoje em dia, com resistência interior, imponho-me não ler mais do que alguns artigos de jornal por dia e tomar apenas um dos telejornais. Em chave autocrítica, o que eu perdi nos primeiros tempos foi a qualidade do tempo de recato e oração. Cheguei a quebrar alguns rituais de paragem e noto bem o preço que paguei, eu e alguns outros, que me suportaram mais hiperativo, mas ao mesmo tempo cansado, tenso, irritado e com menos rumo. Interpreto com naturalidade este desnorte: eu já sabia que a existência era contingente, que a crueldade pontuava, que nada era garantido, que a liberdade projetada na fé de Deus em nós tinha um preço. Mas aqui, tudo isto, que aparece em pequenas doses na nossa vida, está em formato do shot. Absorvido este excesso, sinto um apelo a uma qualquer pós-ressaca. Não tenho neste momento a meu cargo sistemático crianças e jovens em processo educativo. Sei bem, porém, a criatividade e a atenção que, nesta tensão entre a informação que traz a verdade incontornável e a moderação, há um desafiante discernimento.
Atuante mas contemplativo
Com uma razoável impulsividade, que certamente inclui bondade, mas que terá o seu quê de mecanismo de fuga e inquietação, envolvi-me com outras pessoas na mobilização de redes solidárias para o acolhimento de refugiados ucranianos. Compreendo-me a esta distância, mas sublinho a fragilidade maior neste caminho: não raras vezes, perdi a noção da positividade e do sentido. Tomado por certa urgência, real ou antecipada, o que me faltou e desejo retomar com mais força, é esse olhar que não prescinde do belo. E o horizonte contemplativo é parte não descartável, como aponta a metáfora evangélica de Marta e Maria. O fazedismo sempre foi tentação minha e notei-o exacerbado estes dias…
Generoso mas prudente
No contexto nacional, o processo de acolhimento de migrantes ucranianos é um misto generosidade, voluntarismo, emoção, eficácia, improviso, planeamento, racionalidade, ingenuidade, ação, coração, etc. À medida que o tempo passa, a tendência é para moderar e amparar os caminhos, tentando conferir sustentabilidade aos processos de acolhimento. Ao gesto generoso se deve somar o amparo jurídico, a tentativa de dar lastro institucional, o olhar e a concretude que dão futuro ao gesto de acolher. E tudo isto pede algum tempo. Nem sempre estive munido deste equilíbrio. Quando a emoção avulsa e certa pressa tomou conta das ocorrências, o processo fragilizou. Ir buscar gente à fronteira da Ucrânia sem contexto institucional, legal e sem avaliar as condições para o respetivo acolhimento, é o exemplo típico de alguma imprudência. Do ponto de vista pessoal será inspirador, nas ofertas de bens e vontades, contar armas, metáfora irónica neste contexto… Não convém também, como me aconteceu bastas vezes, alimentar autopressões mais ou menos morais, sobre o pouco que faço: a caridade, como a nossa fé, é sempre pequena… e há que conviver bem com isso. Quem se mete nestas coisas da solidariedade sabe que as surpresas acontecem, que a expetativa deve ser gerida (e principalmente baixada, até zero, no melhor dos sentidos). Por vezes, diante de joio que vinha no meio do trigo, cheguei a pensar “onde eu me meti, mais valia ter ficado no sofá”. É tentação pura, e o caminho, quando algo corre menos bem, é dar melhor e não deixar de dar.
Comunicante mas contido
Notei-me muito falador e pouco escutante. Em qualquer conversa, emito… e falo sobre a guerra. Digo-me otimista mas muito preocupado. Especulo, filosofo (baratamente…), adivinho futuros. Medos… Este é um dos aspetos que existia antes da guerra: sou um dos distraídos que despreza o ouvido em favor da boca. Recomendo a mim mesmo, principalmente agora, mais silêncio e mais escuta. E se gosto de falar (porque gosto), pois que espere pelas perguntas dos outros. Meu jejum mais preciso é o da palavra.
Colhido pelo facto mas aberto ao quotidiano
Perante o compreensível mergulho na realidade que nos engole, é muito importante ir retomando alguns gestos. Sem tal significar distração ou anestesia, a vida continua e isso é uma das respostas à brutalidade deste tempo. Abandonei durante três semanas o cuidado da horta e a remoção das daninhas de hoje fez-me refletir com algum sentido autocrítico. A natureza ensina…
Realista mas esperançado
Há desafios neste cenário, nos planos das ideias e da ação, que são duma complexidade extrema. Quando analogicamente penso num matulão numa escola em bulling violento ativo, e na forma como eu, se pudesse, o travaria (usando força, bem entendido), fico partido diante da convicção de não responder à guerra com a guerra e, ao mesmo tempo, sensível ao justo pragmatismo de uma paz mundial (ainda) armada. O que fui vivendo nestes tempos, em dança de moções, levou-me variadas vezes aquilo a que poderia chamar recomeços amorosos. Recordo com inspiração as máximas de Santa Teresa (mais contemplativa) ou de Teresa de Calcutá (mais ativa, mas mística nos seus desertos), sempre apontando para a grande pequenez do amor. Nas guerras maiores, o elixir é o mesmo das guerras menores: salvar-me-á sempre, a mim e a todos, o amor que falta. O amor que somos chamados a derramar no espaço e no tempo, também e principalmente neste instante incerto.