Paiva, J. C. (2022). Posso rezar pelo milagre do fim da guerra? Site Ponto SJ, 01-11-2022.
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Já existem no Ponto SJ algumas reflexões sobre esta temática da oração em tempos de guerra, como aquela que aponta para a oração pelo fim dos tiros. Tendo a associar-me aos argumentos apresentados, mas permito-me outro olhar, de alguma forma convergente, como que ampliando a questão: não há milagres pelos quais possamos rezar?
A oração é sempre um tatear. O ponto inicial e constante sobre oração é este mesmo: rezamos toscamente e, como tal, somos apenas aprendizes de oração. Na tradição da Igreja há referências inspiradoras, de experiências místicas e não só, que evidenciam esta fragilidade de partida no gesto orante. A lucidez dos próprios santos sempre os trouxe a este lugar da intrínseca inabilidade da oração. Rezar é uma aproximação com o seu quê de artística: é um dinamismo que resulta da dança dos pincéis que somos na tela branca e livre da doação amorosa de Deus. Neste sentido, o terreno dialético da oração é deliberadamente vago e aberto. A resposta à pergunta que dá título a este pequeno texto é ‘sim’. Na realidade, claro está, podemos rezar pelo que quisermos… Mas para o autor destas palavras, a oração aflita pelo milagre extraordinário, no cenário privado da doença ou no cenário público da guerra, soa a uma certa insuficiência.
O milagre, a teologia e a ciência são uma trilogia complexa e não raras vezes mal entendida e, sobretudo, mal comunicada. Uma das nuances dos milagres, como em subtilezas congéneres, parece mesmo estar no (multi)significado da palavra. Se nos concentrarmos nas definições típicas de um dicionário, a palavra milagre, de alguma forma, apresenta relação com três atributos: 1) causa de espanto; 2) potencial simbólico; 3) evento não explicável no quadro das leis naturais e da ciência atual (ela mesma, ciência, forte e segura mas sempre ‘provisória’. Tenho tendência a valorizar o lado espantoso e maravilhante dos milagres, bem como o seu potencial simbólico. Desvalorizo, pelo contrário, a não explicabilidade (científica?) dos milagres. A não explicabilidade não é o toque de Deus e a ciência é radicalmente provisória… Neste sentido, rezar pelo que espanta, reconhecer o que espanta e ligar-me ao que espanta, parece-me ser um bom caminho.
Há metodologias inspiradoras para rezar, que nos podem ajudar. Sabemos que se pode rezar em todo o lugar, na reserva do quarto, comunitária e publicamente ou caminhando na rua. Importa o corpo e o espírito, sendo que a procura de certo silêncio e abertura interiores são itens de qualidade para a oração. Apesar de rezar ser muito da ordem íntima e por isso pessoal, é bom puxar mais no nós do que no eu. Podemos ainda convocar certa persistência e, com alguma relação de cumplicidade, convém atribuir à oração disciplina, em tempo e espaço inegociável. Gosto de começar e acabar tudo o que diga respeito à oração com o oxigénio do reconhecimento agradecido.
Convoco para esta conversa uma expressão pitoresca: “não me apetecia esta guerra…”. Não sei se ouvi esta expressão tal e qual, mas recordo-me de uma parecida, aquando da pandemia, agora lida como uma espécie de antecâmara em miniatura dos dilemas que a guerra traz: “estou farto da pandemia”. Há um lado natural e até saudável na expressão dos nossos sentimentos e das nossas emoções, na vida, nas relações e, portanto, na oração. A oração, aliás, tem espaço para tudo e, como tal, também para os nossos desabafos. Mas a precariedade (existencial e teológica) desta postura, pode ajudar-nos a iluminar a oração… Auto-centrar-me nas minhas angústias, sem cultivar janelas de respiro, e convocar Deus para me (nos) resolver os problemas operacionais da existência, é uma espécie de “meter deus no bolso” (Bonhoeffer diria que equivocamente procuramos um “deus tapa-buracos”). Não é muito recomendável instrumentalizar a transcendência e a potencialidade e o alcance da oração pendem-nos algo diferente: a abertura que abrimos na oração é um outro e maior horizonte…
Deus teima em apostar amorosa e misteriosamente na liberdade dos homens: uma liberdade que pode tocar, como na cruz de Jesus, a maior das crueldades, a mais cínica das injustiças… E é nesta bebedeira, com clamor e paciência, que a oração se amadura, na paz e na guerra da nossa existência.
Da minha fragilidade orante – reconheço-me numa certa excessividade, a este nível do que peço na oração – encontro-me nem melhor nem pior do que outros estilos de oração cristã. Aponto duas linhas de força sobre a minha miséria de crente rezador: a) já não gasto tempo a chamar à atenção a Deus do que o mundo precisa. Ele sabe bem, endemicamente presente nas entranhas de toda a humanidade. Convoco na minha oração o que vivo, vejo e sinto, mas não preciso de lhe recordar nada… Deus grita e a minha oração é para que eu abra os ouvidos; b) também deixei de rezar por coisas como ‘que acabe a guerra na Ucrânia’. Vou numa outra linha, mais apontada para minha responsabilidade e crescimento e englobando a nossa comunidade. Por exemplo: “que nos abramos à esperança e à generosidade, nas pequenas e grandes coisas, que se gerem contágios amorosos de paz, beleza, solidariedade, esperança e amor. Que eu não perca a força e a coragem de continuar a amar… e assim responda às dilacerantes bombas, as distantes e as que caem perto daqui de onde estou. Que a nossa comunidade, comigo incluído, se abra à esperança, à conversão ao essencial, à atenção… à vida”.
Se me foco, aflito, na urgência milagreira do fim da guerra e perco a noção da grandeza da pequenez, não terei tocado o mistério da experiência de Deus. Se não alcanço o milagre de ver e me alimentar com o detalhe das nervuras dum ordinário trevo, estarei longe do milagre do fim da guerra. Vale a pena poder rezar-vivendo e poder viver-rezando. A guerra da vida, do tempo e do espaço, importa – e eu estou no meio dela. Mas a guerra cuja recruta me chama está cá dentro: e rezar é lutar para aceitar, amorosamente, ser um soldado do sonho amoroso de Deus. A esse milagre acolhido nos candidatamos, por esse milagre rezamos.