Paiva, J. C. (2023). Acolher demais. Site Ponto SJ, 12-03-2023.
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A Igreja Católica Romana encontra-se numa fase muito delicada, frágil, exposta, despida e estimulante.
Os mais otimistas, onde me incluo, conseguem entrever esperança e até alguma contínua tensão intrínseca, que há centenas de anos se vive no seio da Igreja. Há algumas novidades do nosso tempo, porém, que são muito específicas. Um dos dados mais relevantes, que teimamos em não encarar, é estarmos por conta própria, sem privilégios apriorísticos de tradição, de maioria, ou de apoio estatal específico. Todos estes aparentes benefícios, nos últimos anos, nos colocaram numa redoma razoavelmente fechada. Qualquer nostalgia desse outro tempo, aparentemente mais pacífico, mas quiçá menos autêntico, é possível e até legítima, mas infecunda. A nostalgia que nos (re) lançará será a saudade do futuro.
O futuro, por inspiração passada e presente, é o da radical amplitude e acolhimento. Não existe abertura ao transcendente sem ampliação, sem braços abertos, sem horizontes rasgados…
Alguns de nós, assustados com as brechas que a erosão do nosso tempo traz e empedernidos com as respetivas fraturas, recolocaram-se com medo. Medo do que aí vem… Alavancados no medo da liberdade espiritual, que só os espartilhos estancam, exercitamos antigas doutrinações. Argumenta-se que é para clarificar, para defender, para prevenir. A mim soa-me sempre a pedras para atirar ou para construir muros.
A minha inclinação para esta insistente abertura é o Evangelho. Recordo com fascínio e inspiração, precisamente, o acolhimento de Jesus de Nazaré: das mulheres adúlteras, dos cobradores de impostos, dos homens e mulheres cansados do trabalho, das gentes com sede, com fome, com nacos de busca, dos filhos que partem por outros caminhos, dos que têm ausência de vinho para saborear a vida, dos que caminham desalentados, dos que choram, dos que se alegram, dos que vivem e dos que morrem, de todos nós, tecidos da mesma carne frágil, mas vital. Os braços abertos são tais que vão até a uma cruz. Tudo em Jesus é abraço.
A doutrina ou a moral são estruturas importantes, mas para os cristãos deveriam estar no seu lugar: o segundo e não o primeiro. Porque primeiro é o abraço. Se alguém se abeira de mim e eu apresento doutrina ou moral, posso estar bem perto de certo terrorismo doutrinal ou terrorismo moral. Porque primeiro é sempre o abraço.
Alguns dizem, não sem razão, que os Evangelhos também são claros nas propostas de emenda (“vai e não tornes a pecar…”). Mas o lugar desse apontamento é sempre depois do amor desabrido, depois da hospitalidade rasgada, depois do acolhimento deveras incondicional. Permito-me uma leitura eclesial da história recente da Igreja com muito défice destas aberturas. É quase uma questão de quota: de tempo, de energia, de palavra, de comunicação, de ação, de preocupação, de comunicação. Gasta-se ainda muita quota de enfatizamento doutrinal, em relação à dita essência da primazia do abraço. Como se não estivesse escrito “não é o que diz Senhor, Senhor…”. Depois falta também a ousadia da criatividade, que muitas vezes tem mesmo de ser disruptiva, como disruptivo é o amor desconcertante de Jesus.
Estou consciente das rampas deslizantes que andam por aí. Mas o grito principal não é essa denúncia nem essa preocupação. Porque a lucidez que evita tais rampas só é forte se fundamentada na experiência de um radical acolhimento. Isto não é uma novidade. Santo Agostinho rezou a frase maior: quero que tu sejas. Permito-me redundar: quero que tu sejas como tu és. Só depois, sem medo, vem tudo o resto.
Fica a pergunta: pode a Igreja acolher demais? Quero crer que a resposta é “não”. Não existe tal coisa de “acolher demais”. Acolher não tem “mas”! A Igreja terá futuro e presente se se rasgar ampliadamente. A mística ousada, mas fecunda, é a da abertura radical. Só este amor amplo (nos) alimenta. Só assim seremos uma esponja porosa, como o amor de Deus…