doce rendição
O que a vida nos demanda é uma doce rendição: ativos, como se tudo dependesse de nós, mas rendidos, ganhando consciência da beleza da graça…
O que a vida nos demanda é uma doce rendição: ativos, como se tudo dependesse de nós, mas rendidos, ganhando consciência da beleza da graça…
A evolução da religião é compreensivelmente lenta. Observe-se o caso da Igreja Católica: com cerca de dois mil anos de história, milhões de fiéis e, actualmente, cerca de meio milhão de padres e religiosos, tem uma inércia própria. A inércia, na sua raiz científica, relaciona-se com uma tendência que todos os corpos possuem para manter o seu estado (de movimento ou repouso). Quanto maior massa, maior inércia… Por outro lado, estes anos de história e tradição e este volume de pessoas e de conhecimentos, congregam uma sabedoria e um património que dão consistência e corpo à cultura humana, podendo ajudar a humanidade a ter Deus como referência fundamental.
Na liturgia católica romana deste fim de semana escuta-se Mt 3, 1-12
«Uma voz clama no deserto: ‘Preparai o caminho do Senhor, endireitai as suas veredas’»
Esta voz de João Batista que clama no deserto é, também, um símbolo de hoje. Pelo menos em dois aspetos: 1) o grito que damos ao olhar um mundo incompleto e insuficiente, carente e ainda violento e injusto; 2) o grito que podemos dar a nós mesmos, quando nos recolhemos e constatamos a nossa própria fragilidade e incompletude. Em ambos os casos, para fora e dentro de nós mesmos, é uma atenção à mudança que marca os tempos de Advento. Endireitar as veredas, começando principalmente pelo nosso interior, é o caminho a fazer, sempre sem auto-culpabilidade e pressão, antes com doçura e certeza de aceitação…
Recordo com particular simbolismo o dia em que, numa brincadeira corporal bastante física com os meus dois filhos maiores, eles os dois, ao contrário do que acontecia até então, me imobilizaram e dominaram. Estavam maiores e mais fortes que eu. Pensei e disse a mim mesmo: “se fosse o poder e a força que norteassem a nossa relação, esta começava a declinar-se a partir daquele momento”. É um pouco neste sentido que ouso dizer que a turbulência da adolescência se trabalha na infância, precisamente por via do treino do diálogo e do despoder… As pedagogias mais baseadas na força e no poder padecem de futuro livre…
Admito que, dos vários diálogos religiosos na agenda, aquele com o Islão seja dos mais desafiantes e complexos. Reconhecendo essas dificuldades, não poderei deixar de ser um apostante no diálogo universal inter-religioso e, por isso, também com o Islão. Não me vem esta convicção apenas do que leio e elaboro teoricamente. Tive o previlégio de viver três semanas a servir uma comunidade de mais de quarenta muçulmanos em fuga da pobreza. Impressionou-me como a fé e a esperança destes homens, de olhos postos em Deus, em Maomé ou algures nos céus sem nome, os fez superar e achar que era possível trilhar aquele caminho tão difícil, que não é ainda terra de mel (pode até nem ser) mas que precisa de pouco para ser melhor do que o pouco que tinham e de onde fugiram…
Na liturgia católica romana deste fim de semana escuta-se Is 2, 1-5
«O Senhor chama todos os povos à paz eterna do reino de Deus»
Em início de Advento, colocamo-nos na aprendizagem da esperança, na ‘fila’ de quem quer crescer. A expressão do livro de Isaías acentua a tónica numa chamada (numa ek-klesia): “O Senhor chama todos os povos à paz eterna do reino de Deus”. Observe-se a palavra “todos”, um aperitivo judaico, potenciado no cristianismo, que contempla a universalidade (a catolicidade) da proposta de encontro e comunhão. Um incentivo ecuménico e inter-religioso, a bem dizer. Que a ritualização e a pertença eclesial neste Advento sejam sempre potenciadas, resignificadas e vividas, tão só (…), para tentarmos ser melhores pessoas para o reino de Deus.
A escolástica tem papel fundamental na procura dialética entre fé e razão. Sem esquecer outros nomes, destaca-se São Tomás de Aquino, cujo legado é importantíssimo e insubstituível. Sem descurar nem relevar a escolástica (que até é mais uma metodologia do que uma teologia…) será muito difícil não valorizar nos nossos dias uma teologia literária. A Bíblia e a sua exegese, pela via literária, é, assim, radicalmente inspiradora e alavancadora de uma fé com sentido.
Na liturgia católica romana deste fim de semana escuta-se Slm 121, 1-5
«Alegrei-me quando me disseram: vamos para a casa do Senhor»
O salmo 121 é frequentemente cantado na entrada das celebrações litúrgicas. Nada melhor quando nos preparamos para a festa no templo de Deus, do que enfatizarmos a alegria que sentimos por esse facto. Um primeiro desafio de confronto com este salmo, para os católicos romanos, seria perguntarmo-nos se as nossas celebrações são e espelham tal alegria… Mas a dimensão da eucaristia, como sabemos, ultrapassa a componente celebrativa. Há que viver a missa “fora da missa”, quando nos oferecemos para ser alimento de amor para os outros. Assim, alegramo-nos quando entramos noutras casas do Senhor: na nossa casa, na casa da vizinha, na casa do café, na casa da escola, na casa dos amigos, na casa do estádio de futebol, na casa do hospital e até, pela graça de Deus, na casa do cemitério…
Uma das teimas existenciais mais inconsequentes é sacudir os troços de deserto como uma birra. É que o deserto faz parte do trajeto, pode fazer-se com companhia e tem o seu ritmo e sabor…
Na liturgia católica romana deste fim de semana escuta-se Lc 21, 5-11
«Dias virão em que não ficará pedra sobre pedra»
Estas palavras de Jesus podem parecer fatídicas ou dramáticas. São palavras essencialmente de prudência e de coerência com um Deus que ama e não manipula, que dá liberdade à criação, que é Pai, mas não controlador. No Antigo Testamento, é dito que todos os reinos serão reduzidos a nada. Às vezes, a nossa própria vida ou os edifícios que circundam os nossos afectos parecem desmoronar, não ficando pedra sobre pedra. O mais importante, porém, é fixarmo-nos nas próprias palavras de Jesus: “mas não será logo o fim”. Dito de outra forma, qual anúncio da ressureição, a destruição e a morte não serão a última palavra.