J. C. Paiva, Ciência e religião: Uma dúzia de notas sobre discernimento apostólico. Site PontoSJ (que se recomenda…). 27 de dezembro de 2019.
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Esta reflexão resulta, sobretudo, de um processo autocrítico e de alguns ensaios apostólicos relativamente mal sucedidos. Soma-se, claro está, um olhar mais ou menos atento ao que se vai passando à minha volta em certas dinâmicas eclesiais.
Convém, antes de tudo, situarmo-nos em relação ao que é apostólico. Tocados pelo fascínio e sentido de seguir o estilo de vida de Cristo, os Cristãos tornam-se, por assim dizer, Seus amigos, isto é, Seus discípulos. A alegria que gera esta Boa-Nova-vivida é, em si própria, contagiante e não se consegue conter. Talvez seja consensual que ser apóstolo é uma sequência (sobre)natural de ser discípulo. É próprio de ser cristão, portanto, um certo mandato apostólico.
A questão de fundo no dinamismo apostólico é, sobretudo, pedagógica. O dilema apostólico transforma-se, sobretudo, num desafio pedagógico. Em vários movimentos da história, sem excluir alguma perturbação pendular, assistimos, a par de grandes virtudes, a empreitadas cristãs forçadoras, impositoras, amedrontadoras, conteúdescas, moralistas, etc. É consensual que importa, nos nossos dias, em coerência com o que os evangelhos nos dizem do próprio Jesus, propor em vez de impor, dialogar em vez de apresentar categoricamente, ser pergunta aberta em vez de resposta fechada.
Nesta linha, autorecomendo-me e partilho com simplicidade, face ao dilema apostólico, o seguinte:
1- Evitar a militância... Falo das bandeiras muito içadas, que dão mais evidência à exterioridade da pertença do que à essência e ao futuro do ser. Entre um Deus que se quer revelar e o espaço livre de cada ser há um terreno sagrado que nenhum apostolado realiza. Não somos convidados nem a sermos a revelação, nem a fazermos o caminho de quem pode receber. A nossa missão é, tão só, desobstaculizar. No máximo, poderemos ser discretamente transparentes a certa luz que nos atravesse. Tirar algumas pedras do caminho não é isento de criatividade, esforço, inteligência, eficácia e entrega, mas é, (in)significantemente, apenas remover barreiras, apenas isso…
2- Ser mais pergunta! Sim, temos convicções e podemos afirmá-las. Mas de pouco vale afirmar o que não é perguntado. Só será fecundo o que deseja ser recebido. Muita água a quem não tem sede não sacia, encharca. Neste sentido, nem sempre e talvez quase nunca com palavras, o apostolado mais eficaz é o que gera uma pergunta… Acresce ainda que na boa linha de ventos pedagógicos modernos, no melhor dos sentidos, as perguntas são muito vitais. O pensamento filosófico, a empresa científica, a própria curiosidade existencial alimentam-se de perguntas. Uma das consequências desta consciência é o estímulo das perguntas em dinamismos catequéticos e afins. Compreende-se que haja alguma doutrina básica mas o grosso do caminho da Palavra anunciada há-de tecer-se sobre as perguntas de quem vai receber, muito mais do que nos planos (rígidos) de quem engendra ofertas… Não será Deus uma pergunta?…
3- Evitar a redundância. Se há excelentes materiais de pontos de oração para a Quaresma, por exemplo, nas mais variadas formas e feitios, ponderar bem antes de elaborar mais. Se já se testou um mecanismo, atividade ou estilo de apostolado, porque não replicar de forma contextualizada. Se há materiais, recursos e ideias noutras línguas, porque não traduzir e implementar? Há que contextualizar personalizadamente mas sempre evitando a redundância…
4- Fugir dos personalismos. Cada um de nós é único e carismático. O movimento apostólico não há-de ser neutro mas antes seiva do contributo original de cada um que, em comunidade, cria força maior que a soma das partes. Há sempre uma margem de personalização em todos os empreendimentos e assim também no apostólico. Mas, tendencialmente, seria interessante concorrer para criar, alavancar, ajudar, sustentar… mas depois ‘desmamar’ e ir saindo, para que a obra continue para além de quem a começou a esculpir.
5- Uma boa (ou mesmo excelente) ideia é insuficiente. Ideias cheias de potencial apostólico e aparente oportunidade têm ser ratificadas pela realidade (o Espírito Santo que sobra…) e, em particular há que ter em conta se, de facto, no tempo, espaço e condição contextual, a realidade (as pessoas) pedem, têm sede, solicitam, vão aderir, ao que se pensa empreender…
6- Evitar a estatística. Apesar do item anterior, na vida apostólica, não há-de ser o quanto (quantas pessoas aderem, por exemplo) mas a qualidade… a qualidade dos frutos que conta.
7- Criar diversidade. Sempre que possível, propor na lógica de menu: várias opções, escolhíveis de acordo com os perfis e as necessidades, porque unidade não é uniformidade.
8- Evitar agrupamentos ingénuos e muito voluntaristas. É verdade que em Igreja se constrói com os diferentes e todos os mesmismos são de evitar. Mas, temos de convir, há feitios incompatíveis, visões divergentes, ambientes grupais insuportáveis. Vou mais longe: quando possível, em vez de nomear pessoas diversas para um grupo de trabalho, parece-me quase sempre melhor delegar em alguém a escolha/convite dos elementos para determinado grupo ou projeto apostólico. Depois, deixar trabalhar bem as boas lideranças…
9- Não estar agarrado a coisa nenhuma apostólica, isto é, garantir a gratidão. Tudo o que é apostólico é dádiva gratuita e desinteressada. Evitar as paixões possessivas e não valorizar em absoluto as birras por entrelançamento afetivo e falta de lucidez. Em dinamismo apostólico, qualquer cristão está pronto a largar… e sem remorsos, birras ou amuos…
10- Agradecemos aos senhores padres mas fazemos-lhes o favor, a eles e ao mundo, de não dependermos deles para idealizar, gerar e manter atividades. Não é só o imperativo do Concílio Vaticano II a apontar-nos a Igreja circular. São os recursos humanos escassos destes ministros especiais e cruciais que nos convidam a colocá-los numa posição mais estratégica do que executiva, mais monitorizadora do que controladora.
11- Avaliar sempre e sistematicamente e fazer a cheklist acima, podendo usar como grelha de observação filtros éticos e muito cristãos para ponderar o que fazemos, como: os meios estão adequados? estão a tornar-se fins? as finalidades estão claras?… Nesta avaliação, importa apontar para a sustentabilidade. Não é só um termo moderno, é um imperativo. Há que contar armas e perguntar sempre: isto tem pernas para andar, para se suster frutiferamente? Para ir um pouco além das pessoas e do tempo?…
12- Não esquecer que o principal é a inteireza. Acima escrevi que a tensão apostólica é fortemente pedagógica. Um entendimento mais ingénuo de tais envolvências pedagógicas poderia apontar para posturas marcadamente estratégicas ou, pior ainda, magistrais. Acontece que a melhor pedagogia é sempre tonificada pela autenticidade do ser, mais do que pelo engendrar, pelo dizer ou mesmo pelo fazer. Para ser apóstolo, portanto, basta ser…