habitarei para sempre na casa do Senhor

Na liturgia católica romana deste fim de semana escuta-se Slm 22

«habitarei para sempre na casa do Senhor»

«Habitarei para sempre na casa do Senhor», proclama o refrão do 
salmo. Este convite à fidelidade (para sempre) é dos dons mais preciosos da fé. O compromisso, a fidelidade e o ‘para sempre’ podem soar a monótono e a ‘sem aventura’. Ser fiel, porém, pode ser um permanecer que conduz a saborear terrenos de abundância. As tensões paradoxais em que vivemos (e que somos!) conduzem-nos a uma possibilidade dos extremos se tocarem. Um desses jogos dicotómicos acontece com a liberdade e com o compromisso. E se ‘ficar para sempre’ fosse uma abertura? E se a obediência fosse uma liberdade?…

JP in Espiritualidade Frases 22 Março, 2020

tentação, escravidão e liberdade

Mesmo sem carregar na duvidosa concupiscência ou em dicotomias esbatíveis como corpo-alma ou terra-céu, a tentação está aí na nossa vida, devendo merecer a nossa atenção, sobretudo interior. A tentação tem potencial de crescimento e é uma corda bamba cujos pólos são a escravidão e a liberdade…

JP in Espiritualidade Frases 18 Março, 2020

se hoje ouvirdes a voz do Senhor não fecheis os vossos corações

Na liturgia católica romana deste fim de semana escuta-se  Slm 94

«se hoje ouvirdes a voz do Senhor não fecheis os vossos corações»

O pecado (o ‘tiro’ menos certeiro) inqiueta-nos. O afastamento do amor não nos traz paz ao coração. As palavras do salmo apelam à abertura dos nossos corações, ao rasgar de espaços interiores para ao amor de Deus. Santo Agostinho exprime de forma belíssima o confronto entre a sede de infinito e a abertura a Deus. Diz ele: “Tu, Deus, fizeste o meu coração para Ti e o meu coração não terá paz se não repousar em ti”. Confrontados com os nossos limites, com os limites dos outros, com os limites do mundo, valerá a pena repousar a nossa inquietude em Deus…

JP in Espiritualidade Frases 14 Março, 2020

ciências cognitivas e teologia

As ciências cognitivas lançam novos desafios à compreensão do ser humano e da sua experiência religiosa, com base no estudo do cérebro e da mente. A teologia só tem a ganhar se levar a sério os novos dados que lhe vêm da ciência. Os teólogos não se poderão limitar a achar interessantes as teorias científicas, como se não tivessem de as estudar e levar a sério enquanto teólogos. A teologia deve retirar das teorias científicas fundamentadas as implicações que introduzam modificações no próprio discurso teológico e na compreensão que o cristianismo tem de si mesmo. De outra forma, os teólogos poderão estar a fazer um discurso cada vez mais irrelevante e a criar conflitos desnecessários com a ciência em particular e com a cultura, em geral. Depois, convém sempre sublinhar, teologia não é Fé. A tudo falta uma pitada de vivibilidade…

JP in Ciência Espiritualidade 10 Março, 2020

o Seu rosto ficou resplandecente como o Sol

Na liturgia católica romana deste fim de semana escuta-se Mt 17, 1-9

«o Seu rosto ficou resplandecente como o Sol»

A transfiguração de Jesus revela com clareza a filiação de Jesus. Em chave de leitura de fé, esta cena aponta-nos o Filho de Deus. Implícito, está igualmente o convite aos que, olhando Jesus, se deixam transfigurar a eles próprios. É este também o desafio que se coloca a cada um de nós: transfigurarmo-nos, reconhecermo-nos sempre buscados e vivermos como Filhos de Deus, assemelhando-nos a Ele, nesse reconhecimento e nessa forma de viver. No limite, fruto da alegria brotante de uma vida transfigurada, o nosso rosto poderá ser “resplandecente como o Sol”. Está visto que a Quaresma, enquanto caminho de regresso a Deus, não tem a ver como rostos macambúzios…

JP in Espiritualidade Frases 8 Março, 2020

moribundisse

Moribundisse

 

Na moribundisse

desse instante

…longo instante…

se radicaliza

a angústia,

a esperança,

a dúvida e

a certeza.

Ali se joga

em escala

intensa,

em alto grau,

em câmara lenta

rápida

o que a vida

teceu

no tempo.

…Desde o útero

desde o ventre

do cosmos.

Fornos, 4 de dezembro de 2017

JP in Espiritualidade Poemas 6 Março, 2020

tudo em todos

Há uma analogia matemática que nos pode ajudar a aproximar da ideia de que tudo é sagrado, de que há um certo “tudo em todos”: Deus é uma esfera infinita com o centro em todos os pontos e sem círculos (sem limite).

JP in Ciência Espiritualidade 28 Fevereiro, 2020

se alguém te bater na face direita, oferece-lhe também a esquerda

Na liturgia católica romana deste fim de semana escuta-se Mt 5, 38-48

«Se alguém te bater na face direita, oferece-lhe também a esquerda»

 

Dar a outra face, podemos dizer, não é natural. É a chave, porém, para quebrar as espirais de violência que existem no mundo: as das guerras à escala dos países mas também as das pequenas guerras do dia-a-dia. Dar a outra face não é ser ingénuo, nem tão pouco forçar relações inconvenientes ou não queridas. Dar a outra face é até compatível com naturais maus sentimentos por outras pessoas. A originalidade está no coração, na abertura, na oportunidade que sempre podemos reservar para quem nos faz mal. Rezar por quem nos ofende é também um caminho que podemos percorrer, neste difícil mas libertador desiderato do perdão.

JP in Espiritualidade Frases 22 Fevereiro, 2020

A ingratidão

J. C. Paiva, A ingratidão. Site PontoSJ (que se recomenda…). 16 de fevereiro de 2020.

Disponível aqui

A ingratidão

Sempre tive certas cócegas com a palavra, a ideia e o contexto psicossocial da ingratidão. Tudo se tem vindo a agudizar dentro de mim, a ponto de entender que este assunto merece uma reflexão escrita que, em tese, é a reprovação da ingratidão.

Vejamos algumas áreas de ingratidão onde tenho vindo a ser ora ator ora espetador, sempre cada vez mais (auto) crítico:

1. A ingratidão na família

Uma boa imagem deste contexto é uma simples frase que quase todos nós já ouvimos, já dissemos ou, pelo menos, já pensámos: “tanta coisa que eu fiz por este filho (ou outro familiar qualquer) e agora ele faz-me isto… que ingratidão”. Desmontemos a ideia. Num nível mais abaixo desta expressão e, principalmente, deste sentir ou modo de estar, mora o problema da expectativa e, em última análise, da não gratuitidade. A pergunta de ricochete é mesmo esta: “fizeste pelo teu filho mesmo?”. Se sim, então é gratuito, não espera retorno e, principalmente, não se cobra!

Tenho dito, a este propósito, que o problema de muitos de nós, sempre e de uma forma ou outra com o papel de educadores, é uma doença perigosa de ingratidão encapuçada, a que poderíamos chamar ‘expetativite aguda’. A bactéria-anzol ataca o próprio e os outros, abafa, gera culpabilidade, oprime e chantageia. É uma infeção que esmaga. Faz adoecer a liberdade e tende a proliferar em iminente contágio.  Para esta doença só conheço o antibiótico da gratidão!

Em dinamismo educativo, convém não confundir, há que estimular a gratidão e, nesse sentido, apenas nesse, importa promover a não ingratidão. Admito até algum treino de condicionamento primário de certa não ingratidão exterior (para começar, mas nunca como um fim). Há que favorecer ou mesmo forçar, principalmente em idades mais baixas, a não ingratidão. Dizer ‘muito obrigado’, por exemplo, é não só muito bonito como vale muito a pena. Pode ser um bom veículo (nem sempre bastante…) para a gratidão profunda, apropriada e essencial, de dar sem esperar receber.

2. A ingratidão no trabalho

Muitas frustrações laborais residem no tempo interior gasto com a ingratidão. “Dei tanto a este escritório, a esta escola, a este hospital…”. Não me cabe julgar os (sempre legítimos e validáveis) sentimentos e emoções de quem não se sente reconhecido. Mas é também mais fundo, precisamente na questão do reconhecimento, que está o âmago da questão. A procura de reconhecimento é estrutural e, de alguma forma, é nosso ADN existencial. Contudo, é capaz de espreitar liberdade naquilo a que poderíamos chamar a ‘consequencialidade do reconhecimento’, em oposição aos gestos e colocações apriorísticas da ‘causalidade do reconhecimento’. Isto é, em meio laboral e não só, talvez haja caminho para que o reconhecimento seja uma consequência (não uma causa) daquilo que faço e daquilo que sou. Se assim for, se me centrar na consequência, claramente se reduz espaço à ingratidão. No trabalho e não só convém insistir na auto-pergunta mestra: “para onde corro e o que me faz correr?”. As colocações que enfatizem o serviço e uma realização por essa via reduzem os terrenos da tentação da ingratidão…

3. A ingratidão na religião

A ingratidão no terreno religioso e particularmente em sede de missão e de trabalho apostólico tem contornos semelhantes aos da família ou do trabalho mas, em certo sentido, é redobradamente injustificada. Aqui não há lugar para a procura de si próprio mas antes para um serviço, ainda por cima um serviço que se coaduna com o nós, muito mais do que com o eu.

Impressiona-me imenso, em cenário religioso, a invocação da ingratidão, seja em que sentido for. Pode ser do tipo “dei tanto a esta casa/causa e agora fazem-me isto” ou “tantas missas e doações, tanta benfeitoria e agora não tenho direito a nada”. Lá no fundo, normalmente muito embrulhado em emocionalidade difusa e ofuscante, está uma compreensível mas rechaçável procura autocentrada de reconhecimento.

Tenho uma visão muito otimista, devo dizê-lo sem ironia, das tensões do tipo eclesial que levam pessoas a aborrecer-se e a saírem tristes e magoadas de certas empreitadas apostólicas, precisamente afetadas pelo que chamarão, elas próprias, de ingratidão. Trata-se de uma revelação positiva para o sistema. É que isso resulta numa purga de gratuitidade e, no serviço de uma causa, religiosa ou outra, não temos muito a ganhar com a participação de pessoas que, fundamentalmente, se procuram apenas a si mesmas.

Poderíamos ainda escamotear a ingratidão na própria oração. De forma sintética, as ingratidões face à transcendência espelham imagens de Deus porventura desfocadas mas, acima de tudo, a projeção pessoal de alguém cheio de si.

4. A ingratidão do outro

Uma última nota sobre o incómodo que nos causa, tipicamente, a ingratidão do outro. Este sentimento pode até ser empático e não autocentrado e é muito frequente nos educadores. Se o meu filho não for agradecido, tenho de reconhecer, até meramente no plano social, que isso me incomoda. Aqui temos de puxar de uma arma cuja a expressão pode ser cruel mas que ajuda: “se o outro é ingrato, problema dele”. Isto é, eu posso propor mais gratidão, como proposta pedagógica de crescimento. Mas não será do meu crescimento interior forçar o crescimento dos outros. Antes importa o que está na minha mão, que é proporcionar o meu crescimento face ao que julgo não ser o crescimento do outro… Há uma redundância deliberada da palavra crescimento, mas isto daria outro artigo…

A ingratidão, contas feitas, lá no fundo, tem uma âncora que nos autorreferencia. É nessa estrada, a da ingratidão, que caminham as pegadas perigosas daquilo que poderíamos chamar uma teologia de mérito, autorreferenciada e sombreadora da teologia que liberta, precisamente a teologia da Graça.

Estava capaz de generalizar (sempre perigoso…) e recomendar a mim próprio uma radical desconfiança da ingratidão. Quase sempre, talvez sempre, soa a ‘mau espírito’…

Arriscaria dizer que, num sentido que deverá ser entendido em contexto, a genuína gratuitidade radica numa questão que atravessa esta reflexão: “o que me devem aqueles a quem eu (me) dou? A resposta libertadora, que demora uma vida a construir é esta e é muito simples: nada!

Qual é o avesso da ingratidão? É, precisamente, a gratidão. Que é, por sua vez, o tutano da fé. Acreditar é apoiar-se na ideia vivível de um Deus que só sabe amar e criar e que resulta numa enorme dádiva. É, portanto, ser gratidão. Isso basta…

PS: Estas ideias seriam mal entendidas, também no plano sociopolítico, se se confundisse o convite à gratidão com a apologia de um qualquer posicionamento passivo, sem espaço para a revindicação e para a denúncia e para a procura da justiça. “Sê grato e amocha”, não é o lema subjacente.

JP in Espiritualidade Textos 20 Fevereiro, 2020