J. C. Paiva, A ingratidão. Site PontoSJ (que se recomenda…). 16 de fevereiro de 2020.
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A ingratidão
Sempre tive certas cócegas com a palavra, a ideia e o contexto psicossocial da ingratidão. Tudo se tem vindo a agudizar dentro de mim, a ponto de entender que este assunto merece uma reflexão escrita que, em tese, é a reprovação da ingratidão.
Vejamos algumas áreas de ingratidão onde tenho vindo a ser ora ator ora espetador, sempre cada vez mais (auto) crítico:
1. A ingratidão na família
Uma boa imagem deste contexto é uma simples frase que quase todos nós já ouvimos, já dissemos ou, pelo menos, já pensámos: “tanta coisa que eu fiz por este filho (ou outro familiar qualquer) e agora ele faz-me isto… que ingratidão”. Desmontemos a ideia. Num nível mais abaixo desta expressão e, principalmente, deste sentir ou modo de estar, mora o problema da expectativa e, em última análise, da não gratuitidade. A pergunta de ricochete é mesmo esta: “fizeste pelo teu filho mesmo?”. Se sim, então é gratuito, não espera retorno e, principalmente, não se cobra!
Tenho dito, a este propósito, que o problema de muitos de nós, sempre e de uma forma ou outra com o papel de educadores, é uma doença perigosa de ingratidão encapuçada, a que poderíamos chamar ‘expetativite aguda’. A bactéria-anzol ataca o próprio e os outros, abafa, gera culpabilidade, oprime e chantageia. É uma infeção que esmaga. Faz adoecer a liberdade e tende a proliferar em iminente contágio. Para esta doença só conheço o antibiótico da gratidão!
Em dinamismo educativo, convém não confundir, há que estimular a gratidão e, nesse sentido, apenas nesse, importa promover a não ingratidão. Admito até algum treino de condicionamento primário de certa não ingratidão exterior (para começar, mas nunca como um fim). Há que favorecer ou mesmo forçar, principalmente em idades mais baixas, a não ingratidão. Dizer ‘muito obrigado’, por exemplo, é não só muito bonito como vale muito a pena. Pode ser um bom veículo (nem sempre bastante…) para a gratidão profunda, apropriada e essencial, de dar sem esperar receber.
2. A ingratidão no trabalho
Muitas frustrações laborais residem no tempo interior gasto com a ingratidão. “Dei tanto a este escritório, a esta escola, a este hospital…”. Não me cabe julgar os (sempre legítimos e validáveis) sentimentos e emoções de quem não se sente reconhecido. Mas é também mais fundo, precisamente na questão do reconhecimento, que está o âmago da questão. A procura de reconhecimento é estrutural e, de alguma forma, é nosso ADN existencial. Contudo, é capaz de espreitar liberdade naquilo a que poderíamos chamar a ‘consequencialidade do reconhecimento’, em oposição aos gestos e colocações apriorísticas da ‘causalidade do reconhecimento’. Isto é, em meio laboral e não só, talvez haja caminho para que o reconhecimento seja uma consequência (não uma causa) daquilo que faço e daquilo que sou. Se assim for, se me centrar na consequência, claramente se reduz espaço à ingratidão. No trabalho e não só convém insistir na auto-pergunta mestra: “para onde corro e o que me faz correr?”. As colocações que enfatizem o serviço e uma realização por essa via reduzem os terrenos da tentação da ingratidão…
3. A ingratidão na religião
A ingratidão no terreno religioso e particularmente em sede de missão e de trabalho apostólico tem contornos semelhantes aos da família ou do trabalho mas, em certo sentido, é redobradamente injustificada. Aqui não há lugar para a procura de si próprio mas antes para um serviço, ainda por cima um serviço que se coaduna com o nós, muito mais do que com o eu.
Impressiona-me imenso, em cenário religioso, a invocação da ingratidão, seja em que sentido for. Pode ser do tipo “dei tanto a esta casa/causa e agora fazem-me isto” ou “tantas missas e doações, tanta benfeitoria e agora não tenho direito a nada”. Lá no fundo, normalmente muito embrulhado em emocionalidade difusa e ofuscante, está uma compreensível mas rechaçável procura autocentrada de reconhecimento.
Tenho uma visão muito otimista, devo dizê-lo sem ironia, das tensões do tipo eclesial que levam pessoas a aborrecer-se e a saírem tristes e magoadas de certas empreitadas apostólicas, precisamente afetadas pelo que chamarão, elas próprias, de ingratidão. Trata-se de uma revelação positiva para o sistema. É que isso resulta numa purga de gratuitidade e, no serviço de uma causa, religiosa ou outra, não temos muito a ganhar com a participação de pessoas que, fundamentalmente, se procuram apenas a si mesmas.
Poderíamos ainda escamotear a ingratidão na própria oração. De forma sintética, as ingratidões face à transcendência espelham imagens de Deus porventura desfocadas mas, acima de tudo, a projeção pessoal de alguém cheio de si.
4. A ingratidão do outro
Uma última nota sobre o incómodo que nos causa, tipicamente, a ingratidão do outro. Este sentimento pode até ser empático e não autocentrado e é muito frequente nos educadores. Se o meu filho não for agradecido, tenho de reconhecer, até meramente no plano social, que isso me incomoda. Aqui temos de puxar de uma arma cuja a expressão pode ser cruel mas que ajuda: “se o outro é ingrato, problema dele”. Isto é, eu posso propor mais gratidão, como proposta pedagógica de crescimento. Mas não será do meu crescimento interior forçar o crescimento dos outros. Antes importa o que está na minha mão, que é proporcionar o meu crescimento face ao que julgo não ser o crescimento do outro… Há uma redundância deliberada da palavra crescimento, mas isto daria outro artigo…
A ingratidão, contas feitas, lá no fundo, tem uma âncora que nos autorreferencia. É nessa estrada, a da ingratidão, que caminham as pegadas perigosas daquilo que poderíamos chamar uma teologia de mérito, autorreferenciada e sombreadora da teologia que liberta, precisamente a teologia da Graça.
Estava capaz de generalizar (sempre perigoso…) e recomendar a mim próprio uma radical desconfiança da ingratidão. Quase sempre, talvez sempre, soa a ‘mau espírito’…
Arriscaria dizer que, num sentido que deverá ser entendido em contexto, a genuína gratuitidade radica numa questão que atravessa esta reflexão: “o que me devem aqueles a quem eu (me) dou? A resposta libertadora, que demora uma vida a construir é esta e é muito simples: nada!
Qual é o avesso da ingratidão? É, precisamente, a gratidão. Que é, por sua vez, o tutano da fé. Acreditar é apoiar-se na ideia vivível de um Deus que só sabe amar e criar e que resulta numa enorme dádiva. É, portanto, ser gratidão. Isso basta…
PS: Estas ideias seriam mal entendidas, também no plano sociopolítico, se se confundisse o convite à gratidão com a apologia de um qualquer posicionamento passivo, sem espaço para a revindicação e para a denúncia e para a procura da justiça. “Sê grato e amocha”, não é o lema subjacente.