A saudade da missa é estruturalmente insuficiente

J. C. Paiva, A saudade da missa é estruturalmente insuficiente. Site PontoSJ (que se recomenda…). 10 de maio de 2020.

Disponível na íntegra aqui

Uma declaração de interesses prévia que, mais do que me colocar em ângulo menos suspeito, previna eventuais retiradas de frases ou ideias fora de contexto, que pervertam a mensagem que gostava de passar: como cristão, faz-me falta celebrar a eucaristia em comunidade; reconheço na celebração da missa uma oportunidade notável de congregação de fé; não entendo, nesta linha, que esta “quarentena missal” deva implicar qualquer desvalorização da eucaristia (pelo contrário…). Porém, algumas perguntas se me colocam…

1- Desejar e agradecer o regresso à missa com que horizontes?

Posso estar a exagerar mas, nem sei bem porquê, imaginei uma festa de alguns em agradecimento a Deus pelo regresso da missa, como os antigos dançavam, aplacando a ira dos deuses tiranos e mandatórios, em festa pela vinda da chuva… Em todo este processo de confinamento, como de resto já era na nossa vida, há desafios notáveis para resignificar constantemente as nossas imagens de Deus. Não sei se levamos a sério o risco de Deus em nós, na nossa liberdade e no pulsar do mundo, o Seu mistério amoroso de omnitransformação, que recusa caprichosamente marionetar o tempo e o espaço. Até admito a mim próprio agradecer a Deus o regresso da missa, quando chegar o tempo oportuno, em segurança sanitária e na mais elementar alteridade humana… e por isso também cristã. Mas, no meu caso, sinto um apelo a agradecer-Lhe este tempo que estou a viver, de desafio para um crescimento, pessoal e comunitário, numa Igreja em caminho. O que teve, tem e terá a dizer-nos esta experiência de não poder celebrar a partilha de um pão tão especial?

2- A ausência da missa é crucifixão?

Temo certa visão e vivência destas privações sacramentais como cruzes flagelantes a suportar. Não serão antes oportunidades de re-velar um sempre novo Cristo que espreita? De rever a nossa posição mais ou menos rotineira face às potencialidades dos sacramentos, que importa serem sempre novos? O Evangelho é Boa Nova e este Espírito novo que sopra não meteu férias com medo do vírus. Está aí, a soprar e a inspirar, a provocar e a co-mover. Voltar ao que era é sempre curto, recuar apenas não é o estilo de Jesus. Não será a privação sacramental, mais do que uma crucifixão, uma Páscoa que se adivinha para um novo renascimento? Não será claro o convite, mais do que a saudade pela saudade, a saber estar numa Igreja vazia (como o Papa bem mostrou)?

3- Haverá espaço para a diversidade celebrativa e para a Igreja doméstica?

O que nos tem trazido este tempo, enquanto crentes Católicos Romanos, é um desafio concentrado de provocação nascida há seis décadas de dentro da nossa Igreja, fruto de um fecundo discernimento eclesial de síntese de toda a tradição: sermos Povo de Deus em caminho. Os convites a certa desclericalização estão aí para quem os quiser ver e viver. Nasceram em cada casa, como cogumelos, verdadeiras igrejas domésticas, capazes de viver e celebrar Cristo no seu seio. Reinventaram-se rituais plenos de significado e de sentidos entre os mais próximos de cada habitação. A Alegria do Evangelho pode verter-se no cuidado da Casa Comum, em cada lar, precisamente através do tesouro que é a Família (e varro uma tríada de importantes escritos de Francisco…). Temos ainda algum caminho para andar mas estão a ser muitas as sementes colocadas na terra para gerarem, finalmente, batizados que, por o serem, são sacerdotes por Cristo, com Cristo e em Cristo…

4- Será de rever os ‘mandamentos da Igreja’?

A expressão ‘mandamentos da Igreja’ nunca foi da minha simpatia. Entendo melhor os mandamentos de Deus mas, mesmo esses, potenciados pela mediação eclesial, são tateamentos comunitários e pessoais muito complexos. Sempre preferi propostas a imposições. E é aqui que pode colocar-se em cima da mesa uma nova pedagogia eclesial: mais centrada na proposta a batizados responsáveis do que na deliberação dirigista. A exigência cristã é evidente mas ela há-de ser subida (ou descida?…) sempre e apenas se, for andaimada pela consciência pessoal exigente e interiorizada. Nos rituais como na moral, a fasquia não pode rastejar, mas pode se proposta em vez de imposta, porque assim fazia Cristo. Poderão dizer-me que sem regras e normativos entra a balda e a excessiva personalização. Não nego esse risco mas prefiro corrê-lo em detrimento do seguidismo cego e forçado. Queremos, será que queremos, que alguém vá à missa porque tem que ir? Não merece aquele altar da radical partilha do pão gente mais automotivada?

Há uma tensão evidente entre a riqueza da interioridade e a banalização da exterioridade, onde se podem inserir certos rituais, também religiosos. Este tempo de privação sacramental é uma clara purga de exterioridades, um convite à interioridade com Cristo, na nossa profundidade pessoal e coletiva, brotando da nossa sede e da interfragildade, que já existia, mas que o covid19 enalteceu. Todos sabemos do perigo da exterioridade das cerimónias e, portanto, da sua possível esterilidade. Ir à missa e ficar na mesma, sem crescimento interior, é o que não queremos nem cremos, como crentes em caminho.

5- Só uma Igreja que caminha com os mais pobres nos pode galvanizar

Só a Igreja dos pobres nos pode interessar. O Papa Francisco, a começar pelo nome que se deu, anda a semear. Tudo o que esta pandemia enalteceu foi o grito dos mais frágeis, que convocou universalmente todos os homens de boa vontade no planeta inteiro. Se somos todos frágeis, se somos todos buscadores, se somos todos pobres, pois a Igreja é dos pobres. Enquanto houver gente a sofrer, sem pão e sem amor, será tal a nossa inquietação aguda, a nossa mobilização central. A missa, é para nos fazer sair da missa em missão com os mais pobres, onde nos incluímos. Esta pandemia trouxe para a ribalta a atenção aos últimos, aos mais velhos, aos dos países mais vulneráveis, aos que clamam. O pão que se parte e reparte na missa é a fragmentação que nos parte o coração mas que, ao mesmo tempo, nos fascina pela agudeza da dádiva radical. É a celebração que nos impele a acudir aos mais necessitados. Essa, é, sem dúvida, a saudade do futuro que nos falta!

JP in Espiritualidade Textos 12 Maio, 2020

Ressureição como processo

A Ressurreição é muito mais do que um acontecimento. É um processo… Mais do que exterior – embora seja dádiva – importa a ressurreição que vem de dentro… Entendemos a maioria dos processos quando os tomamos por ontológicos. O mais crucial da fé cristã é que Jesus está a ressuscitar em nós…

JP in Espiritualidade Frases 4 Maio, 2020

pensando que era o jardineiro

Na liturgia católica romana deste fim de semana escuta-se Lc 24, 13-35

«pensando que era o jardineiro»

Um dos traços comuns das aparições de Jesus é o facto de Ele aparecer, muitas vezes, “disfarçado”. É o caso do diálogo travado com Maria Madalena. Ela julga estar a falar com um jardineiro e com ele desabafa o seu desalento e a sua preocupação. É questão teológica curiosa e complexa esta de um Deus que quase se esconde. Revelar, aliás, é ir tirando o véu… Traduzível na vida dos cristãos é a pergunta metafórica: quantos jardineiros se atravessam sem que os vejamos, anunciando a ressurreição?

JP in Espiritualidade Frases 26 Abril, 2020

vergo-me

Vergo-me

 

Vergo-me

em silêncio

face

ao espectáculo

da dor.

Tiro sandálias

engulo sílabas

verto lágrimas

… e páro!

Fico,

em silêncio,

cravado

onde estou.

Todo inteiro,

agarrado.

Abraço

aquele tempo,

tão instante

quanto eterno

… e permaneço,

vergado,

… em silêncio!

 

28 de Janeiro de 2011

JP in Espiritualidade Poemas 22 Abril, 2020

viviam unidos e tinham tudo em comum

Na liturgia católica romana deste fim de semana escuta-se At 2, 42-47

«viviam unidos e tinham tudo em comum»

 

As primeiras comunidades cristãs eram convidadas a uma vida de partilha e de unidade. Na verdade, esta era (este é!) o fruto da Páscoa… Ter em comum é tão libertador quanto difícil de concretizar. É impressionante constatar, a título de exemplo, o número de ‘corta-relvas’ que existem numa rua de casas com jardins, sendo que um só, partilhado, sobraria… O excesso de bens que possuímos, ainda por cima, em muitos casos, à custa de extorsões da natureza que, pelo menos indiretamente, afetam os mais pobres, são uma provocação adicional para esta Páscoa da partilha.

JP in Espiritualidade Frases 18 Abril, 2020

igrejas e sacramentos em tempos de pandemia

Não me sai da cabeça esse cartoon engraçado que circula, com qualquer coisa deste tipo: um globo em covid19 que tem um diabinho a dizer “fechei-te as igrejas todas” e um “Deus” que responde “eu abri uma igreja em cada casa”. Dará que pensar sobre a revalorização da Igreja doméstica; certo retorno às primeiras comunidades; recuperação de uma dimensão mais interiorizada da vida espiritual. Criticaremos uma civilização que queira apenas e nostalgicamente voltar a ‘uma vida normal’ (o que será isso?). Mas teremos de refletir, também, sobre a Igreja (povo de Deus em caminho, atento aos sinais dos tempos…). Compreende-se a saudade sacramental mas, assim como será curto o mundo voltar ao que era, a Igreja será pouco evangélica (portadora de novidade) se se limitar a voltar a ser o que era…

JP in Espiritualidade 16 Abril, 2020

Pai nosso auto-responsabilizante

Sempre desejei ensaiar um “Pai Nosso” em versão responsabilizante. Seria uma oração incompleta, porque, a menos do “Nosso”, lhe falta maior grau de sublinhado do ‘nós’ e apresenta uma assumida desproporção da expressão “eu”. Mas seria assim:

Pai Nosso, que estás em mim.

Reconheça eu a Tua bondade existente.

Acolha eu os Teus critérios

em tudo aquilo que realizar, hoje e sempre.

Deixe-me eu perdoar pelo Teu perdão

assim inspirador para o perdão aos outros.

Saiba eu viver pleno na tentação

promovendo o Bem, que és Tu. 

JP in Espiritualidade Frases 14 Abril, 2020

Não está aqui: ressuscitou

Na liturgia católica romana deste fim de semana escuta-se Mt 28, 1-10

Não está aqui: ressuscitou

A Páscoa, mais confinada numa intimidade familiar ou mais pública, em comunidades maiores, é sempre a afirmação vivida de que a morte não vence. Nenhum contratempo, nenhum vírus, nenhuma contenção, nenhuma indefinição, serão a última palavra. O Evangelho poderia ter escrito, sobre a ida ao túmulo por parte das mulheres: “a morte não está aqui, ressuscitou…”

Páscoa é ponte, passagem. Da morte à vida. É a ponte do serviço, que só o é se for muito concreto. Em tempos, tentei ser concreto com sugestões para crianças, que fossem exemplos possíveis de ‘pontes de serviço’.  Hoje reconheço que podem fazer sentido, também para mim:
1-      Eu tinha o poder de me armar que tive boa nota no teste mas posso servir ajudando os colegas com mais dificuldades.
2-      Eu tinha (e tenho) o poder de andar de carro porque os meus pais têm carros mas posso servir a natureza e andar mais a pé.
3-      Eu tenho poder de gritar e dizer disparates e até ofender mas posso servir, escutando mais e dizendo coisas agradáveis aos outros…
4   Eu tenho o poder de gerir as minhas coisas e ficar com elas só para mim mas posso servir e emprestar ao irmão, ao vizinho, à amiga.
5-      Etc.

JP in Espiritualidade Frases 12 Abril, 2020

hei-de fixar-vos na vossa terra e reconhecereis que Eu, o Senhor, digo e faço

Na liturgia católica romana deste fim de semana escuta-se Ez 37, 12-14

«hei-de fixar-vos na vossa terra e reconhecereis que Eu, o Senhor, digo e faço»

No traço judaico-cristão, reconhecemos um Deus criador-amante, que se quer mostrar e que se quer dizer. De alguma forma, é esta a profecia que se rasga neste trecho do Livro de Ezequiel. Na fé, acolhemos um Deus-que-promete. Em tempo de Quaresma (que prepara a grande ponte entre os homens e Deus) entrevemos a morte amorosa e a ressurreição, que explicitam para os cristãos a ‘cereja no bolo’ desta profecia, deste Deus que só sabe criar amando e amar criando. E nós, por graça, podemos ser coautores da profecia…

JP in Espiritualidade Frases 28 Março, 2020