esperançamentos…
O cristianismo não será ingénuo nem fácil. Mas não há toque cristão sem um tom esperançador e otimista: Jesus desfataliza a história…
O cristianismo não será ingénuo nem fácil. Mas não há toque cristão sem um tom esperançador e otimista: Jesus desfataliza a história…
Na liturgia católica romana deste fim de semana escuta-se o salmo 15
«Senhor, porção da minha herança»
Os salmos são textos poderosos mas encerram um poética carente de extração e contextualização histórico-teológica. Importam, muitas, vezes, os traços subtis cantados transversalmente. No presente caso, seja a confiança.
Pode ser interessante fixarmo-nos numa palavra, num verso, numa ideia, e a partir dela… tecer. Seja a frase: « Senhor, porção da minha herança». Podemos refletir sobre as heranças, isto é, aquilo que nos foi deixado pela geração anterior ou o que deixaremos para outras gerações. Se perguntarmos o que mais precioso nos foi legado pelos nossos pais, pelos que estiveram antes de nós, terão sido os bens, casas ou terrenos, posições sociais ou diplomas? E o que gostaríamos de deixar aos que nos seguirão, à geração seguinte, aos filhos, se os tivermos? Estamos conscientes de que a esperança, a confiança, pode ser o mais precioso legado que podemos deixar a alguém?…
A Bíblia é um conjunto de textos ou «livros» escritos em diversas épocas. Embora se baseie na história do povo Judeu, muitos dos seus textos devem ser interpretados não literal mas metaforicamente. A Bíblia tem um carácter não apenas histórico mas também sapiencial, contendo uma sabedoria de vida mais do que um saber sobre factos. Nos nossos dias, é absolutamente claro que a Bíblia não é um texto científico, não devendo, por isso, ser lido como tal. A linguagem bíblica, muito rica e crucial para os crentes, é muitas vezes simbólica e, à semelhança de todas as expressões artísticas e literárias, alimenta-se de metáforas e parábolas das quais importa retirar a mensagem principal. Assim como o poeta Camões escreveu que «o amor é um fogo que arde sem se ver» e ninguém apaixonado imagina que dentro de si se inicia uma combustão viva e invisível, também a descrição simbólica de Adão e Eva, por exemplo, não deve merecer uma leitura literal e descontextualizada do texto bíblico…
Deus tem fé em nós e por misterioso mistério arriscou criar-nos e amar-nos como seres livres, num cosmos que pulsa também as suas liberdades…
Na liturgia católica romana deste fim de semana escuta-se Mc 12, 41-44
«Esta pobre viúva deu mais do que todos os outros»
Nesta acutilante denúncia, Jesus desvaloriza a ostentação dos fariseus e enaltece a simplicidade da viúva indigente. O que mais nos pode impressionar é que individualmente e como comunidade, estamos repletos deste “resquício farisaico”. Quantos de nós, militando na mesma Igreja que Jesus fundou, este Jesus que combateu os gestos hipócritas dos fariseus, procuramos a exibição nas praças e os primeiros assentos? Procuremos, no dia-a-dia, em oposição, fixarmo-nos nos antípodas da ostentação, focados na radicalidade generosa da viúva pobre.
PS: Pode ser libertador e útil, quando bem aproveitado, o confronto com as escrituras nas celebrações religiosas… Será uma vantagem da ‘ritualização religiosa’: constituir-se no privilégio de poder aproveitar esses encontros, também, para muitos processos críticos e autocríticos, comunitários e pessoais, crescendo e gerando abertura à transformação.
Na liturgia católica romana deste fim de semana escuta-se Mc 12, 28b-34
«Amarás o Senhor teu Deus. Amarás o teu próximo»
Os mandamentos do amor a Deus e ao Homens são o cerne da fé judaico-cristã e são invocados com frequência como o terreno firme da religião. Pela negativa, dir-se-ia que a religião se afasta tanto mais do seu trilho quanto mais secundariza este ideário. Destacam-se dois amores (canções de Marco Paulo à parte…): a Deus e ao próximo. Mas podemos focar-nos num ‘terceiro amor’, implícito nesta passagem, sem o qual não há eficácia amorosa: o amor a si mesmo. A intenção seria amar o outro como a mim mesmo. Portanto, sem nos amarmos a nós mesmos, não poderemos amar a Deus e aos irmãos. Temos aqui algum lastro da autoestima, do conhecer-se (e aceitar-se) a si mesmo. Não é narcisismo porque tem finalidade mais ampla, sempre fora de mim, mas contando comigo e com o abraço de acolhimento e validação que consigo dar a mim mesmo… este abraço dado, reconhece-se oferecido … e a isto os crentes chamam Graça.
O tempo que nos é dado, agora para teclar, imaginar e criar a saudade do futuro, é, desde logo, uma enorme Graça.
Na liturgia católica romana deste fim de semana escuta-se o Salmo 125
«Grandes maravilhas fez por nós o Senhor»
Ter fé, de alguma forma, é apoiar-se vivencialmente na ideia de que o amor é a última palavra e, portanto, Deus fez (e faz) maravilhas. O Salmo 125 coloca-nos num dinamismo que diz respeito à nossa vida: o salmista fala nos homens (nós) que “à ida vão a chorar” mas “à volta vêm a cantar”. Saber que o regresso é de júbilo torna possível e até animada uma partida sombria. Ter futuro, ter esperança no Senhor, ter certeza no cantar, suporta o nosso presente e ampara a nossa dor. Este processo repete-se em pequenos e grandes ciclos da nossa vida e, às tantas, o futuro e o presente confundem-se: chora-se cantando e vive-se a esperança. Andará por estes critérios a fé, a própria bem-aventurança da vida…
Nas suas versões mais pragmática (a própria vida…) ou mais mística (a eucaristia, por exemplo), o cristianismo, na sua montra antropológica, rasgada e aberta, pode dizer-se na simples frase: “Deus é capaz de corpo para que o homem seja capaz de Deus…”
Na liturgia católica romana deste fim de semana escuta-se o Salmo 32
«A Terra está cheia da bondade do Senhor»
Sermos capazes de ver e saborear as coisas boas é um elemento fundamental do nosso crescimento espiritual. Os Santos, em particular, são contemplativos, isto é, tentam ver com os olhos de Deus. Podemos olhar a nossa vida, os outros, a História, as situações e a Terra, salientando no que vemos “a bondade do Senhor”, conforme as palavras do Salmo. Não somos ingénuos e sabemos da existência do mal, dentro e fora de nós. Mas não conseguimos caminhar sem “atestar o depósito” da alegria, com a “bondade do Senhor”. Há uma palavra curiosa, neste contexto, que se pode convocar: a “abundancialidade” (da criação contínua…).
PS: Há uma linguagem própria das escrituras e da religiosidade, que pode precisar de resignificação. A expressão “Senhor”, por exemplo, pode ser encarada e vivida espiritualmente como um caminho de recentramento no que é essencial, num “qualquer coisa Outro” (O Senhor – amoroso), que não eu próprio…