Por vezes, podemos arriscar alguma antropomorfismo da matéria para sermos mais claros (ainda que menos rigorosos, como às vezes nos impõe a didática…). Há um conceito importante em química que diz respeito à afinidade electrónica. Este conceito relaciona-se com a energia posta em jogo, quando um átomo recebe um electrão. Se muita energia se libertar nesse processo de captação eletrónica, então a afinidade electrónica (uma medida da tendência desse átomo para chamar a si electrões) é grande. Se, pelo contrário, pouca energia se libertar (ou, como por vezes acontece, se for preciso fornecer energia para o átomo «suportar» mais um electrão), então a afinidade electrónica é pequena. Também noutras palavras e contextos a palavra afinidade tem este significado: ter afinidade com alguém é gostar e querer esse alguém. Falar em «paixão» dos átomos para se ligarem, por exemplo, observando que uns têm mais apetência para se ligarem do que outros, para determinadas espécies químicas, pode ser esclarecedor. O conceito de electronegatividade, que se relaciona com a afinidade electrónica e diz respeito à tendência dos átomos para chamarem a si electrões na ligação química, pode ganhar, do ponto de vista pedagógico, com a palavra «guloso». O átomo de flúor é muito guloso de eletrões (tem grande electronegatividade… e grande afinidade electrónica) e, quando se liga com outro, como o hidrogénio, por exemplo, menos guloso, formando uma molécula de fluoreto de hidrogénio (HF), dá origem a uma molécula polar (com pólos). As cargas negativas (respeitantes aos electrões) estão mais tempo do lado do flúor, que é muito guloso de electrões, do que do hidrogénio, que é menos «guloso»… Como é interessante (e quase humanizante) a interpretação química da natureza…
Há um eixo concetual da química que torna esta ciência tão necessária quanto fascinante: o que tendemos a fazer, é interpretar as propriedades macroscópicas das substâncias (e das respetivas transformações), com base no dinamismo corpuscular que constitui dinamicamente a matéria. Por exemplo, se um material é duro e/ou se funde a temperaturas altas, é de supor que os corpúsculos que o constituam estejam fortemente ligados… Como é interessante tentar tatear como funcionam as coisas!…
O estímulo intelectual que a Tabela Periódica induziu e provoca e as aplicações tecnológicas que esta arrumação dos elementos químicos permite e permitirá merecem ser festejados.
J. C. Paiva, 150 anos da Tabela Periódica: um marco na história e na nossa vida. Site PontoSJ. 1 de novembro de 2019. Disponível em
A ONU proclamou 2019 como o Ano Internacional da Tabela Periódica dos Elementos Químicos. Esta organização reconhece a forma como a ciência química se tem vindo a manifestar relevante para a vida na Terra, nomeadamente por via das aplicações práticas em áreas como a saúde humana, a produção de novos materiais, a sustentabilidade, etc. Convergirão iniciativas celebrativas de organizações como a UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), a IUPAC (União Internacional de Química Pura e Aplicada), as sociedades científicas, incluindo a Sociedade Portuguesa de Química, universidades, escolas secundárias, e outras instituições públicas e privadas que quererão comemorar a importância da Tabela Periódica e as suas variadíssimas aplicações.
As tentativas de sistematização dos elementos químicos (mesmo antes de se ter a própria ideia de elemento químico) são tão antigas quanto a própria ciência. O nome Mendeleev, porém, é central nesta história. Nos finais do século XIX, Dmitri Mendeleev começa a esboçar uma forma revolucionária de classificar e “arrumar” os elementos. Este russo, o mais novo de mais de uma dúzia de irmãos, intuíra que se poderia numa mesma estrutura organizativa dispor os elementos de acordo com o seu peso atómico e, também, de acordo com as semelhanças das propriedades atómicas das respetivas substâncias. Uma ideia congénere (a famosa lei das oitavas, de analogia musical) havia sido tentada pelo químico britânico Newlands, mas, em bom rigor, não foi muito levada a sério (nestas coisas da ciência, como em tudo na vida, não basta o génio: há que estar na hora certa e no local certo…). Mendeleev juntou elementos em grupos de sete, dispondo-os em linhas, notando que, com certa periodicidade, as propriedades se repetiam. Por isto mesmo esta genial organização foi batizada de Tabela Periódica. As linhas horizontais, a que se chamam períodos, e as colunas, a que se chama grupos. Sabemos hoje, melhor do que na altura de Mendeleev, que as linhas horizontais têm os elementos ordenados segundo o seu número atómico (isto é , o número de protões, que, em bom rigor, define um elemento químico). No primeiro período, por exemplo, temos o hidrogénio com número atómico um e o hélio, com número atómico dois. As colunas da Tabela Periódica, por ser turno, definem elementos cujas substâncias têm propriedades semelhantes. Cobre, prata e ouro, por exemplo, são metais do grupo 11.
A genialidade de Mendeleev foi ter deixado ‘buracos’ na sua tabela com vista a poder incluir elementos que não se conheciam ainda mas que tinham um lugar reservado para ulteriores descobertas. Impressionante, também, para não dizer belo, foi a forma como os novos conhecimentos químicos se ajustaram a recompreender sucessivamente a estrutura da Tabela. A mecânica quântica trouxe a possibilidade de estabelecer o conceito de orbital, como uma zona do espaço onde há eletrões. Às orbitais mais externas dos átomos chamamos orbitais de valência e, como numa sinfonia, os elementos do mesmo grupo apresentam todos o mesmo número de eletrões de valência.
A Tabela Periódica contempla cerca de 120 elementos distintos: destes, 92 são naturais e os restantes são sintetizados artificialmente, sendo que a maioria destes, pela sua instabilidade, apresentam tempos de vida ínfimos. O corpo humano, grosso modo, tem 63% de hidrogénio (por isso somos tão explosivos…), 26% de oxigénio, a maioria do qual formando água com o hidrogénio (por isto metemos tanta água…) e 9% de carbono (por isto somos orgânicos…). O resto são pequenas quantidades de material: enxofre nos cabelos, cálcio nos ossos e dentes, cobalto na vitamina B12, ferro na hemoglobina, potássio na rede neuronal (em quantidade variável…), zinco para oxidar o álcool (que às vezes entra de mais no nosso corpo…), etc. Se houvesse dúvidas, eis que, definitivamente, nós somos química! Todos estes elementos têm o seu lugar na Tabela Periódica…
Para muitos cientistas e agentes culturais, admito que para os químicos, suspeitamente, mais ainda…, a Tabela Periódica constitui um ex libris da ciência. É o cartão de visita da química e do conhecimento da matéria e é notável o que esta higiene classificativa trouxe ao mundo, de conhecimento e progresso. Mais ainda, o que esta organização promete ainda…
A Tabela Periódica encerra algumas provocações metafísicas, de gradientes variados. Especulemos sobre duas dessas extrapolações, em polos opostos: 1) a Tabela Periódica é a última palavra sobre o que somos, material e literalmente. Somos átomos de cerca de uma centena de espécies e, connosco, todo o universo é apenas e só matéria. Este radical-naturalismo, de pendor materialista e positivista, não deixando espaço a ‘outras realidades’ é uma possibilidade e representa uma crença muito comum nos nossos dias; 2) a Tabela Periódica, como outros construtos da ciência sobre a natureza, sublinha de tal maneira a harmonia e a ordem no mundo material que, de forma inequívoca, é a prova científica da existência de um criador. É verdade que num plano existencial e até poético podemos vislumbrar o dedo da criação na beleza e na harmonia da natureza plasmadas na construção científica em objetos como a Tabela Periódica. Mas a ciência e os seus modelos são sempre dinâmicos e as metodologias da ciência não se aplicam a perguntas da ordem do ‘porquê’ mas sim do ‘como’. A fé num criador carece de risco e não é provada pela via da ciência.
Por ocasião deste centenário celebremos a ciência e os seus progressos. O estímulo intelectual que a Tabela Periódica induziu e provoca e as aplicações tecnológicas que esta arrumação dos elementos químicos permite e permitirá merecem ser festejados. Sabemos que nem todas as aplicações da ciência beneficiam o homem e por isso a ética se impõe em qualquer reflexão desta natureza. A ciência trilha, juntamente com outros olhares, um tatear da beleza e do potencial da humanidade. Com fé, podem entrever-se véus mais ou menos discretos de um Criador amoroso.
Muitos dos princípios e tendências usados pelos químicos apresentam exceções. A Tabela Periódica, na sua sequência natural de aumento sucessivo de massas dos elementos, é contradita pelas massas atómicas do árgon e do potássio, por exemplo. A natureza, no seio das suas regularidades, apresenta os seus caprichos. Em química, a exceção não implica refutação mas ajuste… Será uma boa lição de vida?…
O movimento associado à respiração (tão fundante nas práticas meditativas) é cósmico, energético e fraterno. E nada mais corroborante do que a interpretação química: 1) as moléculas de oxigénio que inalamos (ou parte delas) já estiveram noutras estrelas e espaços cósmicos; 2) é devido ao rompimento das ligações entre átomos de oxigénio e à concomitante formação de outras ligações químicas fortes que, por causa da respiração, amparamos as nossas reservas energéticas; 3) as moléculas de oxigénio que inspiramos já estiveram nos pulmões de milhares e milhares de outros seres humanos, nossos irmãos respirantes…
Mesmo para não químicos, “ler” o mundo com os olhos postos nas ligações químicas é, no mínimo, fascinante! O que se passa quando petróleo, gorduras ou as famosas moléculas de ATP estão envolvidos em processos muito energéticos? É que quando as moléculas que compõem estes materiais entram em combustão (reagindo com oxigénio) acontecem duas coisas muito relevantes: aumenta a dispersão molecular e formam-se ligações muito fortes, principalmente em moléculas de dióxido de carbono e água. Tudo tem a sua raiz ‘lá em baixo’, na química das coisas…