“Não precisamos de formar mais professores”: uma falácia na opinião pública que compromete a visão para o futuro. Jornal Público
Paiva, Morais e Moreira (2018).“Não precisamos de formar mais professores”: uma falácia na opinião pública que compromete a visão para o futuro. Jornal Público (26-06-2018).
Disponível no Jornal Público em
https://www.publico.pt/2018/06/26/sociedade/opiniao/nao-precisamos-de-formar-mais-professores-uma-falacia-na-opiniao-publica-que-compromete-a-visao-para-o-futuro-1833279
“Não precisamos de formar mais professores”: uma falácia na opinião pública que compromete a visão para o futuro
João Paiva, Carla Morais e Luciano Moreira – Universidade do Porto
O problema do (não) rejuvenescimento dos professores portugueses tem merecido reflexão* e debate, mas notam-se dificuldades na ação, principalmente no plano político e governamental. Tais constrangimentos existem, precisamente, porque, para muitos, parece que estamos a falar de um problema com contornos aparentemente insignificantes e inconsequentes, quando, na verdade, se trata de um problema absolutamente determinante para o presente e para o futuro do nosso sistema educativo. Mas são as questões estratégicas, que envolvem um horizonte a médio e longo prazo, as mais importantes; as que convocam o Estado na sua missão de garantir a sustentabilidade do desenvolvimento, do legado intergeracional e, acima de tudo, a necessária e urgente visão realista e factual no que respeita à formação de professores em Portugal.
Para além dos horizontes eleitoralistas, a ação política, isto é, a capacidade de propor causas e estabelecer prioridades, é afetada pela opinião pública. As ideias feitas e os argumentos infundados propagados na comunicação social não são mera espuma dos dias. Pelo contrário, contribuem para condicionar projetos políticos estruturantes. O hoje, agora e já são tratados sem ter em conta o amanhã, depois e adiante. Tal acontece, na nossa ótica, na notícia vinda a público no jornal Expresso: “Professores: uma profissão sem renovação à vista”**.
Vejamos em chave crítica, tendo como pano de fundo a realidade que melhor conhecemos, respeitante aos professores de Físico-Química (adiante FQ: notar que a referida notícia apresenta apenas os dados gerais e não discrimina por áreas de formação e atuação profissional; a nós interessa-nos especialmente a situação dos professores FQ, que é retratada no estudo original***). Anotamos algumas incorreções, imprecisões e dúvidas, que nos suscitam reflexão:
- A notícia refere que em Portugal se formam anualmente 1500 professores. No documento original, não encontramos estes dados referidos. Independentemente da correção do valor geral, o panorama em FQ é bastante diferente. Atualmente, em Portugal, apenas a Faculdade de Ciências da Universidade do Porto e o Instituto de Educação da Universidade de Lisboa em conjunto com a Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa formam professores de FQ. O número nos últimos anos tem sido pouco expressivo. Anualmente, temos menos de uma dezena de professores formados em FQ, por ano, em Portugal.
- A notícia cita corretamente o estudo no que diz respeito ao rácio professor/aluno, situando-o em 10. Este rácio é comparado com os de outros países sem que seja clara a legitimidade da comparação. Tratando-se de um rácio geral (isto é, N alunos/N professores) não retrata fielmente a realidade nas escolas portuguesas. Isto torna-se evidente no caso de FQ em que o rácio é de 129 (menos elevado na realidade, considerando que nem todos os alunos escolhem a disciplina no secundário). Além disso, um eventual aumento do rácio não se traduzirá necessariamente num agravamento das condições para a maioria dos professores. Poderá muito bem incidir nas disciplinas com menos procura. Ou seja, há muitos modos de ajustar o rácio e será mesmo discutível se este deveria ser o indicador a usar.
- A notícia enfatiza que haverá “muito menos” entradas de professores (13 000) em comparação com a saída (30 000). Dito de outro modo, há mais de dez professores que entram para cada 30 que saem. Esta observação deve ser enquadrada com a diminuição da procura de cursos de formação de professores (nomeadamente, em FQ).
- Registam-se ainda imprecisões e nuances semânticas, que, em conjunto, concorrem para um tom de urgência e dramatismo associado à não apetecibilidade da profissão docente junto da opinião pública:
- i) Em lugar de uma perda, fruto da natalidade, de “quase menos 160 000” alunos, o estudo original aponta para exatamente 150 000 alunos.
- ii) Inversamente, em lugar de um universo previsível de “57 000 professores” no ativo em 2030, o estudo refere “pouco mais de 57 000”.
iii) Tanto no artigo como no estudo original, o eixo das ordenadas de vários gráficos não tem início no zero (0), dando, assim, uma impressão distorcida e exagerada, por exemplo, das saídas de professores e perda demográfica de alunos que se situa, grosso modo, em ⅕ ou dito de outro modo uma perda de dois em cada dez alunos.
Há uma subtileza que se prende com a oportunidade e o timing deste artigo: anuncia-se um boom de contratações até 2020 que coincide aproximadamente com o ciclo político atual. Uma outra política de contratação poderia permitir a insuflação de ar fresco de forma faseada, minimizando o vazio de contratações antecipado de forma alarmada e intencional para o quinquénio seguinte.
Um dos pressupostos adicionais é o de que todos os professores formados deveriam ter lugar nas escolas. Ora, o emprego a 100% dá-se apenas num conjunto restrito de profissões e é sempre explicável por razões conjunturais. Assim, não se entende a razão porque se tem feito disto bandeira no caso dos professores.
Finalmente, há numerosos professores que exercem cargos administrativos. Não sabemos qual a percentagem, natureza, muito menos a adequação proporcional à exigência das funções e consequente menor disponibilidade para a componente lectiva.
No caso específico dos professores de FQ, facilmente se compreende que será necessário que o Estado continue a garantir a sua formação, numa proporção que uma boa análise sócio-estatística, com pouco risco, pode indicar. Tal imperativo não resulta só do fundamental rejuvenescimento do corpo docente. É também crucial, mesmo tendo em conta as baixas demográficas previsíveis, para garantir o não vazio de profissionais na área.
Adivinha-se algum paralelismo e situação convergente com outros grupos disciplinares que não FQ, como a Matemática, a Biologia/Geologia ou mesmo as Humanidades.
O estudo referido na notícia é importante e precisa de ser analisado com o detalhe e especificidade que merece qualquer interpretação, sem habilidade estatística: há que não uniformizar o que não pode ser generalizado. Por outro lado, na sua extração mais ampla, pode e oxalá induza os decisores políticos para um olhar mais profundo e promissor. De outra forma, este estudo e principalmente as notícias que o embrulhem com extrações simplistas, acabará por ser usado como uma meia verdade que, como a vida nos ensina, é a seiva da inação, suportando a ausência de estratégia educativa de futuro..
A opinião pública tem também um papel importante no grau de benignidade ou toxicidade que pode adicionar à profissão docente. Ser professor é das mais nobres missões e das mais fascinantes atividades profissionais. Somar à fragilidade conjuntural que afeta o prestígio docente a ideia de que não haverá futuro profissional pode eliminar o ser professor das escolhas vocacionais dos nossos melhores jovens e, assim, ampliar o deserto da qualidade dos professores que são, sem demagogia, um dos elementos fundamentais da promoção da educação. Não há melhor garantia para um povo do que a melhor educação e, sem apostar de forma sistemática e estratégica na formação inicial de professores, não haverá o amanhã que se deseja na escola.
***http://www.cnedu.pt/content/edicoes/estado_da_educacao/CNE-EE2016_web_final.pdf (pp. 348-357)