Discernimento e dúvida
O acerto está para o discernimento como a certeza está para a fé: tudo se joga na tentativa tateante e na dúvida estruturante!
O acerto está para o discernimento como a certeza está para a fé: tudo se joga na tentativa tateante e na dúvida estruturante!
O professor tenta gerir com sabedoria, dedicação e firmeza as ajudas que oferece. Quanto melhor gerir essas ajudas (por vezes usando-as menos), melhor poderá contribuir para que o aluno conquiste a sua autonomia. Dar menos, às vezes, é virtuoso pedagogicamente…
Há uma analogia matemática que nos pode ajudar a aproximar da ideia de que tudo é sagrado, de que há um certo “tudo em todos”: Deus é uma esfera infinita com o centro em todos os pontos e sem círculos (sem limite).
A arte de dar sentido e novidade às rotinas mais ou menos quotidianas é das procuras que vale a pena. Se a maior parte da vida é quotidiano, porque não fazer da rotina uma festa?
Último segredo
Meu último segredo
é este deserto
este trabalho
este suor
de procura.
Disfarço
convicções fortes
mas são ténues
as formas
de um duro
esculpir.
Só vagamente
uma nesga de Sol
aquece
mares duvidosos.
Mas saboreio
uma laranja
na sombra da árvore
depois da horta
amanhada.
Esse gomo
me salva!
Fornos, 2019
Na liturgia católica romana deste fim de semana escuta-se Mt 5, 38-48
«Se alguém te bater na face direita, oferece-lhe também a esquerda»
Dar a outra face, podemos dizer, não é natural. É a chave, porém, para quebrar as espirais de violência que existem no mundo: as das guerras à escala dos países mas também as das pequenas guerras do dia-a-dia. Dar a outra face não é ser ingénuo, nem tão pouco forçar relações inconvenientes ou não queridas. Dar a outra face é até compatível com naturais maus sentimentos por outras pessoas. A originalidade está no coração, na abertura, na oportunidade que sempre podemos reservar para quem nos faz mal. Rezar por quem nos ofende é também um caminho que podemos percorrer, neste difícil mas libertador desiderato do perdão.
J. C. Paiva, A ingratidão. Site PontoSJ (que se recomenda…). 16 de fevereiro de 2020.
A ingratidão
Sempre tive certas cócegas com a palavra, a ideia e o contexto psicossocial da ingratidão. Tudo se tem vindo a agudizar dentro de mim, a ponto de entender que este assunto merece uma reflexão escrita que, em tese, é a reprovação da ingratidão.
Vejamos algumas áreas de ingratidão onde tenho vindo a ser ora ator ora espetador, sempre cada vez mais (auto) crítico:
1. A ingratidão na família
Uma boa imagem deste contexto é uma simples frase que quase todos nós já ouvimos, já dissemos ou, pelo menos, já pensámos: “tanta coisa que eu fiz por este filho (ou outro familiar qualquer) e agora ele faz-me isto… que ingratidão”. Desmontemos a ideia. Num nível mais abaixo desta expressão e, principalmente, deste sentir ou modo de estar, mora o problema da expectativa e, em última análise, da não gratuitidade. A pergunta de ricochete é mesmo esta: “fizeste pelo teu filho mesmo?”. Se sim, então é gratuito, não espera retorno e, principalmente, não se cobra!
Tenho dito, a este propósito, que o problema de muitos de nós, sempre e de uma forma ou outra com o papel de educadores, é uma doença perigosa de ingratidão encapuçada, a que poderíamos chamar ‘expetativite aguda’. A bactéria-anzol ataca o próprio e os outros, abafa, gera culpabilidade, oprime e chantageia. É uma infeção que esmaga. Faz adoecer a liberdade e tende a proliferar em iminente contágio. Para esta doença só conheço o antibiótico da gratidão!
Em dinamismo educativo, convém não confundir, há que estimular a gratidão e, nesse sentido, apenas nesse, importa promover a não ingratidão. Admito até algum treino de condicionamento primário de certa não ingratidão exterior (para começar, mas nunca como um fim). Há que favorecer ou mesmo forçar, principalmente em idades mais baixas, a não ingratidão. Dizer ‘muito obrigado’, por exemplo, é não só muito bonito como vale muito a pena. Pode ser um bom veículo (nem sempre bastante…) para a gratidão profunda, apropriada e essencial, de dar sem esperar receber.
2. A ingratidão no trabalho
Muitas frustrações laborais residem no tempo interior gasto com a ingratidão. “Dei tanto a este escritório, a esta escola, a este hospital…”. Não me cabe julgar os (sempre legítimos e validáveis) sentimentos e emoções de quem não se sente reconhecido. Mas é também mais fundo, precisamente na questão do reconhecimento, que está o âmago da questão. A procura de reconhecimento é estrutural e, de alguma forma, é nosso ADN existencial. Contudo, é capaz de espreitar liberdade naquilo a que poderíamos chamar a ‘consequencialidade do reconhecimento’, em oposição aos gestos e colocações apriorísticas da ‘causalidade do reconhecimento’. Isto é, em meio laboral e não só, talvez haja caminho para que o reconhecimento seja uma consequência (não uma causa) daquilo que faço e daquilo que sou. Se assim for, se me centrar na consequência, claramente se reduz espaço à ingratidão. No trabalho e não só convém insistir na auto-pergunta mestra: “para onde corro e o que me faz correr?”. As colocações que enfatizem o serviço e uma realização por essa via reduzem os terrenos da tentação da ingratidão…
3. A ingratidão na religião
A ingratidão no terreno religioso e particularmente em sede de missão e de trabalho apostólico tem contornos semelhantes aos da família ou do trabalho mas, em certo sentido, é redobradamente injustificada. Aqui não há lugar para a procura de si próprio mas antes para um serviço, ainda por cima um serviço que se coaduna com o nós, muito mais do que com o eu.
Impressiona-me imenso, em cenário religioso, a invocação da ingratidão, seja em que sentido for. Pode ser do tipo “dei tanto a esta casa/causa e agora fazem-me isto” ou “tantas missas e doações, tanta benfeitoria e agora não tenho direito a nada”. Lá no fundo, normalmente muito embrulhado em emocionalidade difusa e ofuscante, está uma compreensível mas rechaçável procura autocentrada de reconhecimento.
Tenho uma visão muito otimista, devo dizê-lo sem ironia, das tensões do tipo eclesial que levam pessoas a aborrecer-se e a saírem tristes e magoadas de certas empreitadas apostólicas, precisamente afetadas pelo que chamarão, elas próprias, de ingratidão. Trata-se de uma revelação positiva para o sistema. É que isso resulta numa purga de gratuitidade e, no serviço de uma causa, religiosa ou outra, não temos muito a ganhar com a participação de pessoas que, fundamentalmente, se procuram apenas a si mesmas.
Poderíamos ainda escamotear a ingratidão na própria oração. De forma sintética, as ingratidões face à transcendência espelham imagens de Deus porventura desfocadas mas, acima de tudo, a projeção pessoal de alguém cheio de si.
4. A ingratidão do outro
Uma última nota sobre o incómodo que nos causa, tipicamente, a ingratidão do outro. Este sentimento pode até ser empático e não autocentrado e é muito frequente nos educadores. Se o meu filho não for agradecido, tenho de reconhecer, até meramente no plano social, que isso me incomoda. Aqui temos de puxar de uma arma cuja a expressão pode ser cruel mas que ajuda: “se o outro é ingrato, problema dele”. Isto é, eu posso propor mais gratidão, como proposta pedagógica de crescimento. Mas não será do meu crescimento interior forçar o crescimento dos outros. Antes importa o que está na minha mão, que é proporcionar o meu crescimento face ao que julgo não ser o crescimento do outro… Há uma redundância deliberada da palavra crescimento, mas isto daria outro artigo…
A ingratidão, contas feitas, lá no fundo, tem uma âncora que nos autorreferencia. É nessa estrada, a da ingratidão, que caminham as pegadas perigosas daquilo que poderíamos chamar uma teologia de mérito, autorreferenciada e sombreadora da teologia que liberta, precisamente a teologia da Graça.
Estava capaz de generalizar (sempre perigoso…) e recomendar a mim próprio uma radical desconfiança da ingratidão. Quase sempre, talvez sempre, soa a ‘mau espírito’…
Arriscaria dizer que, num sentido que deverá ser entendido em contexto, a genuína gratuitidade radica numa questão que atravessa esta reflexão: “o que me devem aqueles a quem eu (me) dou? A resposta libertadora, que demora uma vida a construir é esta e é muito simples: nada!
Qual é o avesso da ingratidão? É, precisamente, a gratidão. Que é, por sua vez, o tutano da fé. Acreditar é apoiar-se na ideia vivível de um Deus que só sabe amar e criar e que resulta numa enorme dádiva. É, portanto, ser gratidão. Isso basta…
PS: Estas ideias seriam mal entendidas, também no plano sociopolítico, se se confundisse o convite à gratidão com a apologia de um qualquer posicionamento passivo, sem espaço para a revindicação e para a denúncia e para a procura da justiça. “Sê grato e amocha”, não é o lema subjacente.
O tempo é onde se tece a liberdade. O tempo que passa é o dom primeiro. Enquanto viventes, temos sempre o tempo para agradecer.
Na liturgia católica romana deste fim de semana escuta-se Slm 118
«A vossa lei faz as minhas delícias»
As leis, no sentido jurídico e na sensação que causam nas pessoas, têm uma carga tipicamente pesada. Embora feitas, em princípio, para ajudar o homem e para lhe dar segurança, as leis provocam constrangimentos. É curioso ver no Antigo Testamento a palavra “delícia” associada à lei de Deus. Saborear a lei do Senhor como uma delícia implica a consciência vivida de uma lei especial. A lei de Deus só pode ser saborosa se for radicalmente enraizada no amor. Em Jesus, esta lei promete ser ‘jugo leve e alívio’ e o melhor teste dessa promessa seria ver a vida dos cristãos a espelhar a lei cristã como doce (mesmo que não fácil…).
Homenagens
Prescindo
hoje e amanhã
(mesmo em cinzas)
de uma qual-quer(?)
homenagem.
Prefiro a memória
Simples e discreta
De um qual-quer(?)
Rasto de amor.
Custa-me ver a fila
(a logística, a mobilização)
para saudar uma honra.
Use-se tal energia
Para abraçar alguém,
Para amparar
Uma qual-quer(?)
pessoa frágil.
Acresce ainda
Que nada mereço.
E a haver uma honra
Seja endereçada
À graça de Deus
Que, por graça também,
Me usou (quando eu deixei)
para se espelhar.
2018