Deus como pergunta
Deus, seja lá o que for, é a interrogação que teima diante de todas as respostas.
Deus, seja lá o que for, é a interrogação que teima diante de todas as respostas.
Há quem entenda que a ciência nasce na europa judaico-cristã, não por acaso. O monoteísmo cristão ajustava-se, então, aos objetivos da construção dos chamados três pilares de que a empresa científica necessitou para se edificar: o ontológico (a realidade existe), o espistemológico (é possível conhecer a realidade) e o ético (é bom conhecer a realidade).
Na liturgia católica romana deste fim de semana escuta-se Slm 46
fortaleza da minha salvação
No salmo que hoje se reza ressalta Deus como “fortaleza da minha salvação”. Saboreie-se um Deus que torna forte a nossa fraqueza e que nos salva, que dá sentido à nossa vida e que vai além das nossas angústias. No evangelho são notadas muitas curas – pontuais e insuficientes (até porque os curados não deixarão de morrer…). Mas com mais relevância, Jesus salva, abre portas, dá sentido de ressurreição. Podemos agradecer – em dinamismo de fé – Ele ser nosso refúgio e, também por isso, pedir-Lhe a graça de, no tempo da nossa vida, sermos nós também eventuais refúgios e sinais de salvação para as pessoas com quem nos relacionamos. Sermos tónicos…
Inscrevi-me recentemente para vacinação covid. É um privilégio imenso. Valorizei essa sorte: ser europeu, estar num sistema de ‘fila’ em que ninguém é mais que ninguém, surfar na alavanca da ciência, começar a espreitar maior mobilidade e abraços mais físicos. É curioso o convite a especializar o que é, ao mesmo tempo, tão ordinário e comum mas tão extraordinário e significativo.
Das várias máximas do tipo “penso, logo existo”, “experimento, logo existo”, “sinto, logo existo (para nos situarmos mais no século XXI…)”, escolheria uma outra: “amo, logo existo”.
No que se refere às aparições de Fátima ou a quaisquer outras, não há nenhum documento da Igreja que obrigue à sua aceitação. Os fiéis são livres de acreditar ou não nessas aparições. O que a Igreja Católica faz é verificar se, pelo facto de alguém dizer que teve uma aparição, se gerou uma determinada prática devocional que se vai revelando significativamente positiva para as pessoas, em coerência com o corpo doutrinal da Igreja e em obediência às autoridades dessa mesma Igreja. Também a qualidade de vida da pessoa que relata aparições é fundamental para a sua credibilidade. Quando estas condições se verificam, a Igreja Católica encoraja esse culto e essa devoção pois tem potencialidades para levar as pessoas a uma vida de maior autenticidade humana e cristã. Há muitas manifestações à volta de aparições e respectivos santuários que a Igreja Católica desaconselha precisamente porque vão numa linha que não responsabiliza a pessoa por uma vida mais autêntica. Por vezes, as pessoas que vão a Fátima também visitam as bruxas, as quais lhes dizem que ir a Fátima acender três velas à Virgem Maria vai afastar o mau-olhado de uma vizinha que lhe produz cólicas no fígado! Ora, seria um equívoco culpar a Virgem Maria, ou as suas aparições, ou a Igreja Católica, de práticas como estas e outras semelhantes. Estamos num dos problemas centrais da prática religiosa de muitas pessoas: uma mistura do cristianismo com elementos de antigas crenças nas quais a relação das pessoas com Deus era baseada no medo e no desejo de aplacar a ira dos deuses e obter os seus favores em proveito pessoal e em prejuízo dos inimigos. O que se passa com Fátima é que a experiência dos que lá vão tem a potencialidade de encorajar as pessoas a mudar de vida num sentido mais humanizante. Este é, aliás, o cerne da mensagem de Fátima: «Que os homens se convertam e se tornem bons», no sentido do evangelho de Jesus Cristo.
Na liturgia católica romana deste fim de semana escuta-se Jo 15, 9-17
a vossa alegria seja completa
A alegria que Jesus nos propõe, a mesma que experimenta na confiança de um amor garantido, é a alegria completa. Todos nós já experimentámos alegrias incompletas, isto é, superficiais e provisórias. Há coisas que nos dão satisfação fazer, que nos dão contentamento, mas, passado algum tempo, nos trazem nostalgia ou mesmo vazio, porque parecem trazer o selo de alguma superficialidade e porventura, também de autocentralidade. Estar numa festa, por exemplo, pode ser palco de dois tipos de alegria: se se cultiva certo prazer, mais ou menos excêntrico, mas autocentrado, sem preocupação com os outros, gera-se contentamento… mas depois, possivelmente, solidão. Se se goza, igualmente, se se faz festa na festa mas pensando nos outros, filtrando os gestos e palavras pela peneira do amor, talvez haja alegria…completa!
A morte de Jesus na cruz já levava o selo de muita vida: a vida do amor até à morte…
Paiva, J. C. (2021). As novidades do dia não estão… no telemóvel Site Ponto SJ, 02-05-2021.
Disponível aqui
O transístor foi uma invenção muito relevante. Curto-circuitando etapas, a pequenez progressiva de todo o arsenal eletrónico permitiu-nos chegar a estes tempos em que, no nosso bolso, podem estar a internet e milhões de dados e informações (i)relevantes, a previsão do tempo e tradutores, emails, mensagens escritas e de voz, o telefone, o controlo de dispositivos em casa, o jornal e até orações. As redes sociais, com os seus prós e contras, tecem-se igualmente no telemóvel. Está ali, portanto, também, algo das nossas relações.
Entender a tecnologia em geral e o telemóvel, em particular, como uma ameaça e um subtrator civilizacional, é nostálgico e pouco fecundo. A procura do equilíbrio parece, antes, residir no ‘tanto quanto’. O fio da navalha coloca-se sempre na pergunta ética que leve a um fazer humanizante. Como químico, gosto de resumir esta tensão ao ajuste da dose. Que dose, neste caso, de telemóvel, pode tornar o aparelho e a minha relação com ele verdadeiramente tónica… e não tóxica, para mim e para os outros?
Algumas dicas quase-práticas para ‘ajustar a dose’
1) de manhã… não começar pelo aparelho…
O início da manhã é sempre uma importante rampa de lançamento do dia. Começar torto é uma porta abertíssima para caminhar torto… e acabar torto. Todos os rituais religiosos valorizam a oração da manhã. Se a vida fosse uma guerra, a oração da manhã era o apontar da artilharia. Sem ela, as munições vão cair erraticamente e podem até causar danos. Quantas vezes reconhecemos que, orientando mal matinalmente, disparamos em todas as direções… Um dos distrativos de orientação chama-se telemóvel. Começar a manhã com as notícias de última hora, com os pop-ups do email ou do WhatsApp, com os espetáculos do istragram ou até com a previsão do tempo, é movediço. Há uma novidade de manhã, que entendo como uma graça, mas que merece o seu trabalho e cuidado: acordar sem vontade de fechar logo os olhos. E uma oração, um naco de silêncio, um agradecimento, comer pequeno almoço ponderado, calmo e sem ruído, são a grande novidade do dia, que brota de dentro e à minha volta. As novidades do dia não estão no telemóvel!
2) às refeições, está desligado
Há uma regra simples e que é consensual para quem reflita minimamente sobre relações humanas, incluindo as connosco mesmos: não ligar o telemóvel durante as refeições. Desligar, colocar em silêncio, tê-lo distante… Sobra espaço para a conversa, com os outros comensais ou para comigo mesmo, para a atitude ponderada e reconhecedora da bondade dos alimentos, para o sabor. Os dedos a teclar e navegar na tela digital favorecem a voracidade do comer, subtraem-nos liberdade…
3) para o quarto é que não
Para crianças e adultos convém também defender-nos do telemóvel no quarto, local de descanso por excelência. Há formas de permitir que apenas chamadas urgentes (um familiar doente, por exemplo) deem sinal, abrindo espaço ao descanso que se procura no quarto e, sejamos humildes, telemóvel e descanso não combinam entre si…
4) proibido se alguém está a querer falar contigo
Todos nós nos espantamos – e lamentamos – um cenário muito frequente em grupos juvenis (e até infantis) em que conjuntos de pessoas estão fisicamente juntos, cada um teclando para o seu lado. Mas alguns de nós, mesmos se adultos críticos destes quadros, já experimentamos estar a teclar no telemóvel com pessoas ao nosso alcance, que desejariam falar connosco. ‘Só um minutinho’, poderemos dizer, ‘tenho uma chamada urgente’. Mas é esta urgência (mal colocada) que nos desumaniza.
5) não deixar de dar feedback
A partir do momento que temos telemóvel (resistindo a uma opção tão hippy quanto tentadora de o não ter.…) temos a obrigação de não defraudar quem nos procura. Assim sendo, SMS sem resposta, emails sem retorno e telefonemas sem chamada ou sinal de volta, são desaconselhados, no que concerne à consideração humana. A dispersão comunicacional em que vivemos pode ter este perigo: banalizar as convocatórias, não significando o toque à porta digital de quem nos procura. Diria mesmo que pode haver um toque ‘sagrado’ na solicitação, também por via eletrónica. Se é sagrado, dê-se-lhe valor e sequência… Pode haver casos de burnout, de não dar conta do recado. Talvez possa ter sentido, nessas situações, prevenir os potencias contactos de que se deixa de ter telemóvel e se atende apenas um número fixo, que só se responde a email ou outra qualquer plataforma clara e coerente que explicite o grau de abertura possível para comunicar.
6) pela positiva: que nos ajude a organizar a vida e promover contactos
Se não se pretende alimentar a visão e vivência pessimistas das inovações tecnológicas, há que sublinhar os aspetos positivos e otimizáveis associados ao telemóvel. Para além de um ‘almanaque sempre à mão’, com oportunidades de conhecimento, organização e contactos, há que potenciar esses caminhos. Numa outra intervenção escrita, gostaria de aprofundar as vantagens da organização digital na vida pessoal e comunitária, mas, para já, a título de exemplo, fica a sugestão de ampliar a eficácia de pontes com pessoas mais sozinhas, tendo uma lista de tarefas dos contactos a promover. Entre outras, esta é uma das vias solidárias – e por isso eticamente cristãs – do aparelho…
7) sentido autocrítico para uma pedagogia capaz de promover a autocontenção
Algumas das regras acima estão radicalmente entrelaçadas nos processos pedagógicos. Pais e professores sabem bem da urgência de educar para o bom uso do telemóvel. Além de tentar começar desde cedo com estas regras (tão anuídas e aceites por todos quanto possível) há que ir fomentando pela conversa, pelo comentário cultural, por várias expressões artísticas contemporâneas (cinema, artes plásticas, literatura, etc.) um sentido genuinamente autocrítico acerca do uso do telemóvel. Os alcances mais ancorados no dinamismo pedagógico serão conseguidos quando forem auto-conquistados. A meta do educador, nunca esquecendo, seria aquela de que o próprio educando interiorizasse e se apropriasse da regra, mesmo que a tivesse recebido em idade mais recuada, como uma rotina… Depois surge a criatividade e o trabalho de engendrar alternativas ao tecnológico, onde a relação com a natureza, a arte, o jogo lúdico analógico e o desporto assumem particular relevo de saída.
Está visto o diagnóstico: reconhecemos mau uso, abuso ou overdose de telemóvel. Falta ‘mãos à obra’ e, incontornavelmente, teremos de convocar alguma autodisciplina, capaz de potenciar este instrumento e esta possibilidade tecnológica, tanto quanto nos conduz para o fim amoroso da nossa existência, que não é desligar-nos, mas ligar-nos!…
PS: Recebo algumas críticas, particularmente dos que me são mais próximos e não sem razão, que me apontam um resvalar, algumas vezes, para um estilo meio professoral, excessivamente pedagógico e até com algum malabarismo estratégico de ‘querer convencer’. Reconheço essa tentação, em parte potenciada pelos ossos do ofício de ser professor. E, nesta reflexão, tenho o dever de confessar o crime. Estas palavras têm o seu quê de endireitar veredas, talvez até de ‘puxar as orelhas’ e contribuir para reorientar um menino que eu cá sei… eu mesmo!
Na liturgia católica romana deste fim de semana escuta-se Jo 15, 1-8
toda a vara que em mim não dá fruto…
A linguagem da videira, do fruto e da poda, tem uma coerência interna interessante e pode com grande facilidade ser antropoligizada. Sabemos que damos fruto se estivermos ligados à videira, que, na linguagem da nossa fé, é Deus-amor. A poda que é necessário fazer, nos ramos que precisamos de deitar fora, é uma constatação importante. Quando alguém nos aponta um defeito, uma atitude menos correta, um vício, temos natural tendência de “deitar as garras de fora”, de nos defendermos e até de contra-atacar. Inspirados neste Evangelho podemos ter um entendimento e um acolhimento diferentes das críticas que nos são feitas: possam ser (nem sempre são, bem entendido) instrumentos de reflexão para crescimento, para eventual poda e para dar mais fruto.