Paiva, J. C. (2022). Um tempo de síntese com Javier Melloni. Site Ponto SJ, 20-05-2022.
Disponível aqui
Prefácio à edição portuguesa do livro:
editor: Fragmenta, abril de 2022 ‧ isbn: 9788417796648
Não consigo separar uma obra da pessoa que a escreveu. No caso do jesuíta Javier Melloni e deste livro ‘Para um tempo de síntese’, a não separação é ainda mais fundamental. Esta é, precisamente, uma obra de não-dualidades. Javier Melloni é, nestas folhas, antropólogo, teólogo, filósofo e estudioso da cultura mas conta muito a sua experiência vivente, em particular no contacto fecundo com outras tradições religiosas, que não a da sua casa cristã. O autor cria contexto reflexivo para o lastro da sua visão mas, principalmente, parte da sua experiência de dialogante, capaz de sair de sua casa, ser hóspede em casa de outro e voltar enriquecido e convergente numa procura comum, que sempre une.
A tradução da obra para português justifica-se para o mundo lusófono. Podemos reconhecer que certa multi e transculturalidade, também projetada religiosamente, se toca mais obviamente em cidades como Londres, Nova York ou Barcelona (lugar do autor). Mas a portugalidade, e os jesuítas aí incluídos, tem enormes cumplicidades com a globalização. Não é só a nostalgia dos tempos das naus. É um potencial de novos mundos, hoje em múltiplos sentidos e por múltiplas vias, que é ainda endémico do ser português e que justifica esta obra na nossa língua. Uma referência merecida para o excelente trabalho de Idalino Simões, com larga e provada experiência na tradução teológica hispano-portuguesa.
As grandes rubricas do livro apontam-nos temáticas que se centram muito nas bases do diálogo: a genuína e complexa alteridade, as nuances de plenitudes e totalidades, as fecundações oriente-ocidente e, finalmente, o potencial inspirador das convergências. Diálogo é um conceito muito usado quotidianamente, no discurso político e não só. Uma prática tentada individual e coletivamente mas com riscos de desgaste, semântico e vivencial. Como acontece com a palavra amor, também ela erodida, de muito ser dita, chamamos diálogo ao que não o é. Vamos a casa de outros com expectativas, não como hóspedes de mãos vazias, mas cheios de (segundas) intenções e agendas de convencimento mais ou menos proselitistas.
Algumas frases do livro colocam dedos na ferida (“quando se reduz a identidade a uma só pertença, a visão do mundo distorce-se, criando um nós contra os outros”) mas, mais importante, abrem janelas de ressignificação (“o próprio das religiões é religar a existência individual com a realidade total”). Há sempre uma preferência pela amplitude da unidade, em detrimento da fragmentação.
Talvez nos falte algum metaconhecimento – e a leitura deste livro pode ajudar – sobre o nosso grau de consciência da incompletude das perspetivas disciplinares, compartimentadas e segmentadas em que vivemos. É mesmo partir-nos, aquilo que não nos deixa inteiros…Esta procura de unidade que perpassa toda a obra não é tecida de ingenuidades. Há um olhar lúcido sobre o mundo e sobre a cultura atual (“o problema do humano é que é incapaz de suportar demasiada realidade”) e um sentido também crítico sobre as religiões ou sobre os seus protagonismos mais duvidosos ou estáticos, já que as mediações
religiosas são complexas e podem mudar com o tempo (“os veículos são feitos para se ajustarem a cada caminho e mudar de veículo não implica alterar o caminho…”).
Este livro tem a importante circunstância de evidenciar o diálogo interreligioso não como uma colateralidade cultural, filosófica ou teológica, mas, precisamente, como lugar teológico. Isto é, “um espaço suscetível de refletir sobre Deus com pressupostos específicos que, pela sua novidade, carecem de recursos, em vocabulário e em método, que, por sua vez, estão em processo de maturação”.
A palavra “processo”, diga-se de passagem, é crucial em toda a obra de Melloni. São curiosas as palavras usadas para caraterizar o diálogo interreligioso como teopático e com potencialidade transformadora: palavra desarmada, despossuída, descentrada, silenciosa e criadora. Ajuda-nos a sistematização religiosa feita por vários prismas, quase sempre inspiradas pelos óculos antropológicos do autor. Em particular, o agrupamento das grandes constelações religiosas em cósmicas, personalistas e oceânicas. As primeiras centram-se na Terra e remetem-nos para os aborígenes, sendo, por isso, (ab)origens de todos nós. As segundas – personalistas – recolocam-nos no “tempo” enquanto lugar ontológico (importância da esperança e do futuro) e incluem as religiões do livro (Judaísmo, Cristianismo e Islão). As terceiras, oceânicas, focam-se em certa diluição do eu. Aqui a espacialidade confunde-se com a natureza e a corporeidade e a temporalidade identificam-se com o momento presente. Sem desprezar identidades e especificações pessoais, culturais e religiosas, intuem-se neste contexto sínteses fantásticas, capazes de gerar processos e produtos plenos de maturidade. Se a matéria é feita de diferentes átomos e de rearranjos, há uma unidade em tudo e pode também, por esta via, apontar-se o tudo em todos e o todos em tudo.
O olhar crítico de Melloni é sustentado e tem uma grande virtude (fazendo lembrar a analogia anatómica de que quando se aponta um dedo a alguém se nos apontam três dedos a nós mesmos). Nas referências ao movimento New Age, por exemplo, sem o isentar de confrontos (há uma diferença entre síntese e mistura, diz), o autor aproveita para autocriticar as matrizes (ou caricaturas, ou contramodelagens) que, concretamente em relação ao cristianismo, nos fazem compreender estas tendências mais ou menos contemporâneas. As referências à questão ecológica são constantes e podemos entrever aqui, na via ecológica (a par das vias mística e ética, apontadas por Melloni) uma estrada paralela à encíclica Laudato Si, escrita pelo papa Francisco já depois do ano de 2011, quando este livro é editado em Espanha.
A obra ajuda-nos a tomar consciência de que, no ocidente, patrocinamos certa cultura “super-ética”, que, de forma mais ou menos moralista, carrega no dever ser e se arrisca a curto-circuitar o eu, eu esse fundamental quer para os outros quer para O totalmente outro que nos transcende… Para este autor, o sagrado “joga em casa” (Deus em nós) e este exercício de tornar próximo o que as religiões muitas vezes colocam distante é uma agenda. Pode afirmar-se que o cristianismo, em si mesmo, é uma realização do transcendente no iminente, que a Encarnação é uma explicitação escandalosa de um Deus que quer fazer-se presente em tudo e em todos… na carne. Mas reconheçamos que este cenário, porventura expresso na doutrina ou na teologia, teima em
não brotar com evidência, como real testemunho cristão.
Uma referência à bibliografia, que por vício académico preferia ver agrupada no final do livro, uma vez que ela reflete inspirações relevantes, que, desde logo, nos situam na obra. Há uma insistência num autor que arrisco dizer ser crucial, em certo exercício de relançamento cosmovisionário de século XXI: Theilhard de Chardin. Notamos uma referência recorrente a Panikkar e a outros autores que trabalharam, entre outros assuntos, as páscoas entre o ocidente e oriente, como Thomas Merton. Temos referências expectáveis neste contexto a Gandhi, Santa Teresa, São João da Cruz ou ainda a Simone Weil e Juan Martin Velasco. Também são citados autores de outras culturas menos frequentes no nosso meio: por exemplo Zhuangzi (cultura Tsé), Seyyed Hossein (cultura Sufi) ou Eliade (yoga).
Atrevo-me a dizer com alguma osmose do meu conhecimento do autor do livro que, nas entrelinhas, embora não citado, está a vida, o pensamento e a ação de Pedro Arrupe. Por vício profissional que estimula o contraditório e a arte de tentar problematizar/falsificar, não posso deixar de indicar algumas objeções ou questões que se me levantam na sequência desta obra, algumas delas já debatidas precocemente, e em processo, com o autor:
1) Que empatia nos podem merecer as relutâncias e resistências a este diálogo radical, que envolvem argumentos de ‘mesmismo’ e de desidentificação cultural e religiosa? (uma boa caricatura é um “tanto faz” em relação a assuntos como ressurreição e reencarnação).
2) As culturas, práticas e técnicas de silêncio que nos inspiram na meditação cristã desprivilegiam deliberadamente a razão, em favor dum aqui e dum agora ‘de coração’. Este trilho é um caminho do tipo ‘ou’ (mente ou razão) ou do tipo ‘e’, de síntese (logos e interioridade)?
3) Os diálogos e os ajustes ressignificantes das práticas religiosas mais dialogadas levantam problemas de confronto com uma tradição valiosa e universal. Que tensões eclesiais se levantam neste ponto? Que riscos têm as práticas religiosas mais personalistas, pessoal ou comunitariamente? Beliscam a unidade?
4) Excluindo qualquer etiqueta de superioridade ou olhar exclusivo, que lugar ocupam as ciências exatas, de berço ocidental, como forma privilegiada de ler o mundo e de enorme impacto social e real na vida de todos nós? Em particular, que sentido crítico nos merece alguma linguagem usada no ambiente meditativo e de algumas culturas orientais que não se articula com os dados da ciência (bom exemplo é o abuso da expressão ‘energia’ que, no meu humilde entender, vai muito bem como tendo a sua forma cinética e potencial e/ou como sendo o produto da massa pelo quadrado da velocidade da luz…).
Por fim, o essencial. Javier Melloni ajuda-nos aqui a arrumar muitas ideias. Parte da nossa tradição judaico-cristã e do logos greco-romano. Certamente não desprezará estas fontes, que o tecem e o ajudam a tecer. Definitivamente, e muito bem, contraria as colocações religiosas de militância defensiva. Para ele, no que escreve e no que vive, há apenas uma trincheira, paradoxalmente aberta ao mundo e plena de potencial dialogante e porosidade: o mistério do encontro no silêncio. Embora seja ingrato sublinhar a insuficiência da palavra num livro que dela vive, percebe-se, também mas não só no seu sentido teleológico, que o encontro com a transcendência, aperitivável neste tempo e neste espaço, tenha na não-palavra íntima e na meditação silenciosa redutos radicalmente fecundos…