jejum
As práticas ascéticas – e o jejum, em particular – não visam a privação pela privação nem sequer a contenção ou a repressão do prazer. Bem entendidas, bem vividas, são alavancas dos nossos espaços de recetividade…
As práticas ascéticas – e o jejum, em particular – não visam a privação pela privação nem sequer a contenção ou a repressão do prazer. Bem entendidas, bem vividas, são alavancas dos nossos espaços de recetividade…
Paiva, J. C. (2022). Pedofilia na Igreja: um rasgo de esperança. Site Ponto SJ, 12-03-2023.
Hesitei antes de escrever estas palavras. Há muito pó no ar, o essencial está dito e escrito, existe perigo de redundância.
Para que não restem dúvidas, coloco-me no lado dos que choram esta dor profunda. Que lamentam adicionalmente – não bastasse a primazia da indizível e imensa fratura das vítimas – o encobrimento, a falta de coragem, a lentidão, a desgraça comunicativa e o desacerto.
Entendo, além do mais, que não chegou a hora de falar para fora da Igreja, sobre a grande e profunda base deste iceberg. A quem me observa como católico romano, neste lugar em que estamos, só quero abrir o peito, assumir, pedir perdão, lamentar profundamente o sucedido, reconhecer que não estamos a dar a resposta assertiva que a realidade pede e propor-me contribuir para ações reparadoras centradas nas vítimas. Desejo fazê-lo na primeira pessoa do plural, porém, por mandato não clerical. Este não é um problema apenas dos Bispos. No mínimo, posso autocriticar-me por não ter participado o suficiente e assim ter permitido chegarmos aqui. A sinodalidade, verdadeiro programa ontológico da Igreja, é para ser vivida em todos os momentos da caminhada e, mesmo que não dentro dos muros religiosos, os leigos católicos estarão a ser escutados.
Mas como este apodrecimento é, na sua génese, estrutural e longínquo, permito-me, ad intra, num espaço como o Ponto SJ, tão católico como aberto, ir desbravando alguns caminhos e, de alguma forma, ir fazendo por ver mais fundo as infeções por onde estamos a sangrar, para que alguma purga seja possível.
Vou concentrar-me, sem desvalorizar argumentos que estão muito em jogo, como o clericalismo, a miopia no que concerne à sexualidade ou a cultura de poder defensivo, no elemento autocrítico que mais me tem vindo a espantar neste dossier: é o facto de grande parte da luz que está a vir para cima da mesa ter sido desencadeada por elementos exteriores à Igreja Católica Romana. Falo de jornalistas, de intervenções nas redes sociais, Ministério Público, sociedade civil. É impressionante que não tenham sido o amor à justiça e à verdade, bem como o privilégio pelos menores, tão escarrapachados no Evangelho, a alavancar a emergência da realidade, como ela é. E gostava de pegar neste facto, por um lado tão dramático, para tecer um rasgo de esperança. Vou tentar explicar-me:
1 – Uma das neblinas comprometedoras da Igreja que somos reside numa visão dicotómica entre as coisas de Deus e as coisas do mundo. Com inspiração agostiniana e não só, há muito deste diapasão nas expressões religiosas que praticamos e nos olhares sobre nós mesmos… e sobre ‘o mundo’.
2- É verdade que a teologia, a cristologia e a eclesiologia mais fecundas já andam há muito tempo noutros terrenos: a mensagem cristã faz precisamente a ponte entre a humanidade e a transcendência e nem seria exagerado escrever que Jesus de Nazaré é em si mesmo este programa libertador de síntese amorosa e integrada entre o céu e a terra, entre a humanidade e a divindade, entre eles e nós. Jesus era alguém misturado nas gentes, mesmo que socialmente não recomendáveis, e não um religioso identitário, rigidamente praticante, doutrinal e defensivo.
3- A visão de uma Igreja “sabichona”, que parte com a sua verdade para converter o mundo, foi enterrada (pelo menos nas palavras) com o Concílio Vaticano II. O seu mandato, precisamente recristificado, é agora aberto e poroso, de fora para dentro e de dentro para fora.
4- Não há portanto – porventura nunca houve – cristianismo sem enculturação. É na cultura como ela é, sem dentro e fora da Igreja, que o Evangelho se pode continuar a dizer. A encarnação precisa de corpo e Deus precisa de mundo para Se dizer.
5- Mais ainda, é no mundo, pelo mundo, com o mundo, que o Espírito Santo se diz.
6- E é por tudo isto que o modelo pedagógico, não só apostólico, mas essencial e estrutural dos cristãos, não é o de gente impecável que vai dizer aos outros como acontece a salvação. Não, esse trilho majestático e unidirecional não tem futuro, porque não é conforme a própria pedagogia de Jesus. Há um dinamismo outro, de escuta, de aprendizagem, de proposta tensional e fluida, que aprende ensinando e que ensina aprendendo.
E o que tem tudo isto a ver com a crise da pedofilia na Igreja portuguesa? É que se trata de uma experiência que confirma aquilo que alguns, nos quais me incluo, já gritavam há muito: não estamos numa Igreja composta de religiosos detentores de uma verdade e de uma prática modelares. E foi de fora, foi o mundo, foram os outros, onde mora agora comprovadamente verdade, que nos pressionaram, que nos ajudaram a ver melhor.
Os mais identitaristas ou receosos de certa diluição cristã podem ficar descansados pois os elementos da democracia, do jornalismo livre, dos valores humanistas, que se alavancaram há séculos e estão na base da sociedade em que vivemos, são eles mesmos, sem nenhuma ingenuidade, fortemente inspirados pelo judaico-cristianismo. Mas isso pouco importa. O mais relevante é compreender endemicamente, no tutano da experiência, a verdade que mora fora das nossas trincheiras. Só há vida na Igreja com abertura e agora temos a enorme missão de ir tecendo uma Igreja de francas portas, em todos os sentidos. É este o rasgo de esperança.
Samaritana
A verdadeira pérola
não é a água
mas procurar a sede
de uma fonte
certa e abundante.
A verdadeira riqueza
não é a água,
é a sede de a querer.
É este vazio,
esta hospitalidade
de crer beber
que me convoca
a construir.
A graça que peço
é a da sede,
que a água é certa!
Galileu era um homem crente, e procurou desconflituar o cristianismo em que acreditava e a ciência que praticava. Adoptou a «teoria dos dois livros», em voga no seu tempo, segundo a qual o universo constituía o «livro da natureza», escrito em caracteres matemáticos, e deveria ser lido por matemáticos, ao passo que a Bíblia, com outros caracteres, era um livro que ensinava à Humanidade o caminho do Céu, devendo ser lido por teólogos. Uma vez que o autor de ambos os livros era o mesmo Deus Criador, era impensável que entre eles houvesse qualquer contradição…
A verdade é um horizonte que está sempre por alcançar… que o digam os cientistas e os religiosos, para quem o mundo, na sua funcionalidade ou posse, nunca se deixa agarrar… A liberdade, porém, mora no esvaziamento constante a na radical desapropriação…
Dizem-me que há lugar para pedir na oração… pois há, principalmente pedir para nos abrirmos a receber. Abrir o “recebimento” é o maior legado dessa triangulação entre nós, a vida e Deus, a que se chama oração.
Na liturgia católica romana deste fim de semana escuta-se Mt 17, 1-9
«o Seu rosto ficou resplandecente como o Sol»
A transfiguração de Jesus revela com clareza a filiação de Jesus. Em chave de leitura de fé, esta cena aponta-nos o Filho de Deus. Implícito, está igualmente o convite aos que, olhando Jesus, se deixam transfigurar a eles próprios. É este também o desafio que se coloca a cada um de nós: transfigurarmo-nos, reconhecermo-nos sempre buscados e vivermos como Filhos de Deus, assemelhando-nos a Ele, nesse reconhecimento e nessa forma de viver. No limite, fruto da alegria brotante de uma vida transfigurada, o nosso rosto poderá ser “resplandecente como o Sol”. Está visto que a Quaresma, enquanto caminho de regresso a Deus, não tem a ver com rostos macambúzios…
NOTA: Este texto é repetido/ajustado a partir de evento já publicado neste blog anteriormente.
L 1 Gn 12, 1-4a; Sl 32 (33), 4-5. 18-19. 20 e 22
L 2 2Tm 1, 8b-10
Ev Mt 17, 1-9
A sala de aula é o espelho da nação. Já não existem apenas elites que têm acessos particulares, mas uma massa ampla e diversa. Ali, nesse espaço sagrado, se ampara o mundo. Para o professor, um duplo e paradoxal desafio: a complexidade do tudo e o desafio de estar na realidade como ela é, podendo contribuir para a mudança…
O semeador contemporâneo tem três grandes daninhas que comprometem a seara: o autocentramento, o preconceito de grupo e a omnicompetência de curto prazo…
Na liturgia católica romana deste fim de semana escuta-se Rm 5, 12-19
«Onde abundou o pecado, superabundou a graça»
Em início de Quaresma, período de inspiração preparatória para os cristãos, fica bem tomar nota do ponto de partida e do lastro que move a própria Quaresma: a verdade da nossa condição (fragilidade) mistura-se com a confiança na ideia vivida de um sentido (fé). Não há Quaresma fecunda, como preparação para a Páscoa (para a ponte que importa) sem esse duplo sentido: somos seres de liberdade que, por fragilidade intrínseca, nem sempre acertamos o alvo (pecado) mas, ao mesmo tempo e mais relevante para a vida da fé, a nova oportunidade, o perdão e a graça, superam essa mesma fragilidade de que somos tecidos. Por isso São Paulo diz aos Romanos (e a nós mesmos) que onde abunda o pecado (a humanidade), abunda mais (superabunda) a graça (Deus). É que a verdadeira conversão, a Quaresma que nos embala, é a rendição a este amor superabundante de Deus. É esta a graça que basta…
L 1 Gn 2, 7-9 – 3, 1-7; Sl 50 (51), 3-4. 5-6a. 12-13. 14 e 17
L 2 Rm 5, 12-19 ou Rm 5, 12. 17-19
Ev Mt 4, 1-11