Acompanhamento espiritual: o lugar estrutural de uma Igreja aberta

Paiva, J. C. (2024). Acompanhamento espiritual: o lugar estrutural de uma Igreja aberta. Site Ponto SJ, 07-02-2024. Disponível aqui

Não será nem exagerado nem simplista entender a Igreja e os seus desafios na atualidade como espaços abertos que, individual e comunitariamente, promovem o integral crescimento espiritual das pessoas. É verdade que este lugar de Igreja apresenta novas equações, novas aberturas e novas saídas, mas toda a tradição secular foi um berço de acompanhamento espiritual. É bom recordar os padres do deserto (e as madres do deserto, menos invocadas, mas existentes) no seu exercício de busca e encontro, amparado com dinamismos de acompanhamento. Por tudo isto é importante sublinhar a urgência eclesial de estimular o acompanhamento espiritual.

A forma como este acompanhamento pode ser processado apresenta hoje características e oportunidades específicas. Desenvolvemos de seguida, ainda que de forma sintética, alguns destes aspetos.

a) É mais acompanhamento (co-caminho) e menos direção espiritual;

Este ajuste mais ou menos contemporâneo, de direção espiritual para acompanhamento espiritual, significa mais do que uma nuance. O termo direção, de facto, apresenta, pelo menos na semântica, senão mesmo na praxis, uma insinuação mais dirigista e vertical. Na sua versão mais aguda, caricatural ou não, a direção espiritual pode pisar a linha da invasão da consciência e, em muitos casos, da manipulação ou mesmo do terrorismo espiritual. De forma mais ou menos direta chegaram-me ao conhecimento experiências traumáticas religiosas vertidas em expressões do tipo ‘é vontade de Deus para ti…’

b) É também e sempre, de alguma forma, psico-espiritual;

Discute-se muito sobre a separação ou simbiose dos terrenos pisados em acompanhamento, no que diz respeito aos fatores espirituais e psicológicos associados. Tenho uma posição ela mesmo tensional sobre este assunto: por um lado, entendo que em nome da inteireza evangélica que procuramos, o acompanhamento espiritual terá sempre que invadir e ser invadido por desafios de natureza psicológica. O espiritual, bem o sabemos, entrelaça-se no psicológico (e no socio-biológico, bem entendido) de forma indissociável. Por outro lado, há casos em que a circunstância psicológica de partida não aconselha a experiência espiritual aprofundada. Inácio de Loyola previne de forma equivalente uma certa condição psicológica e física para encetar a experiência dos exercícios espirituais. Nesses casos de dúvida sobre a robustez mínima de partida, é bom colegiar a aproximação ao acompanhamento, harmonizando triangulações transparentes e eticamente autorizadas pela pessoa em ajuda, entre psicólogos, psiquiatras e acompanhadores espirituais. Tudo isto aponta para a essencialidade e a inteireza encarnada da vida cristã.

c) Pode, com vantagem, ser protagonizado por mulheres;

Sem querer entrar aqui na extensa, complexa e fascinante discussão do feminismo (ou falta dele…) na Igreja, vou entendendo que há um dramático déficit da sensibilidade e de protagonismo feminino, ao nível da visão e do apontamento do Evangelho vivido, precisamente a partir dessa condição humana de se ser mulher. Falta depois, também, na sequência, espaço amplo para a liderança e protagonismo femininos nos exercícios pastorais, eclesiais, sacramentais e espirituais. Enquanto para alguns sonhos de uma Igreja ‘com mais feminino’, estamos sujeitos a uma inércia monstruosa, no plano do acompanhamento espiritual é “desproblemático” e canónico este serviço ser realizado por mulheres. Existe, portanto, no ministério sagrado da escuta e do acompanhamento, uma ampla margem de renovação eclesial, incluindo mais protagonismo feminino. Arrisco dizer que muito sacerdotes teriam a ganhar complementaridade pessoal e pastoral com a experiência de eles mesmos terem acompanhamento espiritual no feminino.

d) Tem sentido propor-se o acompanhamento espiritual como estrutural na vida cristã, sob as recomendações pedagógicas da Igreja (se é que estas ainda são escutadas e apropriadas pelos crentes…).

Poderiam ser revistas algumas ‘obrigações’ doutrinais (interpretamos como sugestões de vida cristã católica) que andam por aí há muito tempo, tantas vezes ditas e vividas de forma excessivamente métrica ou sacramentalista. A ideia seria encorajar fortemente o acompanhamento espiritual como espaço prioritário de crescimento cristão. Este cenário é redobradamente agudo para quem vive no canteiro da Igreja onde fecunda a espiritualidade inaciana. Relembro as normas católicas extraídas do cânone: “1- Participar da Santa Missa aos domingos; 2- Confessar-se ao menos uma vez por ano; 3- Comungar ao menos pela Páscoa da Ressurreição; 4- Fazer jejum e abstinência nos dias estipulados pela Igreja: Quarta-Feira de cinzas e Sexta-Feira Santa; 5 – Ajudar a Igreja em suas necessidades”. Sem deitar fora a água e o bebé, também pelo inegociável valor dos sacramentos, há aqui lugar para outras prioridades que, com toda a certeza, como forte recomendação e aferição de vida cristã, poderiam incluir o acompanhamento espiritual.

Além dos itens a) a d) acima abertos, há uma caraterística do acompanhamento espiritual que é de enaltecer e sublinhar e que, de alguma forma, nos distingue de certas ofertas religiosas mais ou menos fechadas e fáceis, de certo fast food espiritual: o acompanhamento espiritual implica, processo, diálogo, confronto, aprofundamento, trabalho, caminho acompanhado. Vale a pena, por isso, que as instâncias religiosas e o dinamismo sinodal em curso levem muito a sério esta questão, para que se formem mais e melhores acompanhantes espirituais e se fomente esta tradição enculturada, trazida ao nosso tempo e às nossas sedes.

JP in Sem categoria 12 Fevereiro, 2024

fica limpo

Na liturgia católica romana deste fim de semana escuta-se Mc 1, 40-45

quero: fica limpo

Ao repto do leproso “se quiseres podes curar-me”, Jesus responde: “Quero: fica limpo”. Aqui está um “jogo” entre Deus e o homem sobre o qual convém refletir. São elementos importantes: o desejo do homem em ser curado e a resposta pronta do próprio Deus. Seguem-se a cura propriamente dita e até uma recomendação de descrição (não conseguida), bem como um rastilho de testemunho e propagação da fé. Fixarmo-nos essencialmente na fisicalidade mais ou menos espetacular deste relato seria sempre minimizar o seu potencial. Será mais valioso identificar e trabalhar para a cura da nossa “lepra interior”, das chagas que nos degradam…

Este texto é adaptado em parte ou na totalidade de palavras anteriores já publicadas.

L 1 Lv 13, 1-2. 44-46; Sl 31 (32), 1-2. 5. 7 e 11
L 2 1Cor 10, 31– 11, 1
Ev Mc 1, 40-45

JP in Sem categoria 10 Fevereiro, 2024

quasi-ateu me confesso

Eu, quasi-ateu me confesso. Deus, é de tal maneira indizível, de tal forma “totalmente Outro” que eu tenho de reconhecer as minhas (muitas) zonas de ateísmo, em que não O sei expressar, em que não O sei viver. Sou ateu quando digo apenas deus(es). Por vezes (quando eu deixo…) há luz e só luz. Mas em risco, em fé. Negar o nosso auto-ateísmo crítico, mesmo sendo pessoas de fé, é talvez perigoso. Como se pudesse haver certeza ou prova científica da existência de Deus. Não, a aventura é de outra ordem: é uma ponte de corda que faz passagens, desde logo entre a morte e a vida (qual Páscoa), mas corda de fios tecidos de incerteza, de mistério, de não palavra, de mergulho. É deste batismo que precisamos sempre.

JP in Sem categoria 8 Fevereiro, 2024

entre-tanto

Diz bem José Frazão na sua metáfora que valoriza o “entre-tanto” da vida: o processo tensional entre a difícil bênção da contingência e o desejo experimentado da esperança.

JP in Sem categoria 6 Fevereiro, 2024

retirou-Se para um sítio ermo e aí começou a orar

Na liturgia católica romana deste fim de semana escuta-se Mc 1, 29-39

retirou-Se para um sítio ermo e aí começou a orar

Jesus tem um dia estafante… Sentiu necessidade de se retirar para rezar, escondendo-se, de tal forma que os discípulos O procuravam… Este dia de Jesus pode inspirar-nos a nós, que tantos dias estafantes vivemos. Podemos, como Ele, dedicar-nos aos doentes, doentes do corpo, doentes do espírito ou doentes de amor. Convém, contudo, não cair no ativismo, que nos esgote fisicamente para além do possível e que nos des-centre do essencial. É importante estarmos atentos ao ser e ao agir do estilo de Jesus. É bom, pois, retirarmo-nos para descansar e orar e, se for preciso, “escondendo-nos” de algumas provocações e azáfamas…

Este texto é adaptado em parte ou na totalidade de palavras anteriores já publicadas.

L 1 Jb 7, 1-4. 6-7; Sl 146 (147), 1-2. 3-4. 5-6
L 2 1Cor 9, 16-19. 22-23
Ev Mc 1, 29-39

JP in Sem categoria 4 Fevereiro, 2024

Igreja e sexualidades…

Ainda me questiono com a problematização enquistada e moralística de muitos católicos sobre as questões da sexualidade. Fico com a sensação de que, (des)gastando o discurso, os crentes perdem a oportunidade realista de proporem algo diferente a este nível, de alguma forma urgente e de que a humanidade tem sede. No seu livro “a tarde do cristianismo”, Halik diz isto mesmo de forma sintética e eloquente: “O público secular passou a ver a Igreja como uma comunidade enraivecida, obcessivamente preocupada com algumas questões de sexualidade – aborto, preservativos, uniões homossexuais – sobre os quais ela repete os seus anátemas duma maneira que o público deixou de compreender; as pessoas sabem perfeitamente o que é que os católicos condenam mas deixaram de perceber o que é que eles defendem ou de que modo poderiam beneficiar o mundo contemporâneo. O entusiasmo com que certos ciclos eclesiásticos aderem a uma antropologia que se baseia na noção a-histórica aristotélico-tomista da natureza humana e a sua recusa em levarem a sério as ciências naturais e sociais lembra uma adesão imbecil ao modelo geocêntrico do universo. A necessidade de inovar a antropologia teológica está a tornar-se cada vez mais evidente: é fundamental considerar, por exemplo, a ética sexual não a partir de um conceito estático de ‘natureza humana’ mas num contexto éticos de relações interpessoais percebidas dinamicamente. Numa época em que a sexualidade é comercializada, era bom ter uma palavra a dizer no encorajamento de um erotismo de ternura e respeito mútuos”.

JP in Sem categoria 2 Fevereiro, 2024

infalibilidade papal

Kung preferia a ideia de indefectibilidade papal, em vez de infalibilidade. A sua linha de pensamento era valorizar mais o dinamismo seguro de que a Igreja não deixaria cair o essencial da fé cristã. Sou ignorante na matéria e sei também das nuances semânticas destas palavras. Mas aprecio a linha de Kung e antevejo mais respiro neste apontamento à preservação da essencialidade eclesial…

JP in Sem categoria 30 Janeiro, 2024

ensinava-os como quem tem autoridade

Na liturgia católica romana deste fim de semana escuta-se Mc 1, 21-28

ensinava-os como quem tem autoridade

A forma como Jesus ensinava, segundo as escrituras, espelhava autoridade. É bom retermo-nos no potencial pedagógico deste estilo de Jesus, que não seria, com toda a certeza, autoritarismo nem prepotência. A autoridade de Jesus, bem entendido, vinha-Lhe da coerência entre o que dizia e o que vivia. Sabemos que, por sua vez, essa autenticidade era a consequência da Sua unidade filial com uma confiança amorosa estrutural. Inspirador para nós, principalmente quando estamos em papéis educadores…

Este texto é adaptado em parte ou na totalidade de palavras anteriores já publicadas.

L 1 Dt 18, 15-20; Sl 94 (95), 1-2. 6-7. 8-9
L 2 1Cor 7, 32-35
Ev Mc 1, 21-28

JP in Sem categoria 28 Janeiro, 2024

já mas ainda não escatológico…

O ‘já mas ainda não’ é uma teimosia que se me coloca na maioria das razões da minha fé. O próprio cristianismo, tendo aperitivos de plenitude revelada, é escatologicamente provisório…

JP in Sem categoria 26 Janeiro, 2024

imaginação e fé

A verdade religiosa tem dificuldade em penetrar sem ser pela porta da imaginação. Também por isto, Santo Inácio convoca com frequência esta ala imaginativa nas suas propostas de exercícios espirituais.

JP in Sem categoria 24 Janeiro, 2024