DOMINGO DE RAMOS NA PAIXÃO DO SENHOR
L 1 Is 50, 4-7; Sl 21 (22), 8-9. 17-18a. 19-20. 23-24
L 2 Flp 2, 6-11
Ev Mc 14, 1 – 15, 47 ou Mc 15, 1-39
L 1 Is 50, 4-7; Sl 21 (22), 8-9. 17-18a. 19-20. 23-24
L 2 Flp 2, 6-11
Ev Mc 14, 1 – 15, 47 ou Mc 15, 1-39
Na liturgia católica romana deste fim de semana escuta-se Mc 14, 1-15, 47
ainda que todos te abandonem, eu não te abandonarei
A descrição da Paixão de Cristo, que meditamos em domingo de Ramos, é tão longa quanto profunda e repleta de sinais. Uma das formas de mergulhar neste texto é situarmo-nos nas diversas personagens e, em atitude criativa de composição do lugar, perguntar-se “quem sou eu neste cenário?” Pedro, que prometera não abandonar o Mestre, mas que o nega? Simão, o cireneu, que ajuda Jesus a levar a cruz? Um soldado? Um personagem incógnito que vê a cena, mas não se envolve nem se co-move? Pilatos, que lava as mãos? O próprio Jesus? Maria, que assiste em envolvimento, mistério e dor? Barrabás, que se safa na frincha da sorte? O bom ladrão, que in extremis se arrepende e confia?…
Este texto é adaptado em parte ou na totalidade de palavras anteriores já publicadas.
L 1 Is 50, 4-7; Sl 21 (22), 8-9. 17-18a. 19-20. 23-24
L 2 Flp 2, 6-11
Ev Mc 14, 1 – 15, 47 ou Mc 15, 1-39
Paiva, J. C. (2024). Terrorismo religioso. Site Ponto SJ, 20-03-2024. Disponível aqui
Não, não é explodir-se invocando qualquer deus. É fazer “rebentar” em cima de alguém uma pressão moral(ista), sem empatia. Esta é uma arte fértil em terrenos religiosos. Uma arte, aliás, de que eu próprio, em boa verdade, mais vezes do que gostaria, sou exímio praticante.
Com terrorismo religioso, consciente do exagero da expressão, refiro-me a práticas discursivas, muito frequentes no palco da crença, em que se confronta um terceiro com passagens bíblicas ou ideias morais, diante de determinada situação, angústia, dilema, emoção positiva ou frustração. Assim como o nitrogénio usado num explosivo não é em si mesmo mau (essa mesma matéria-prima usa-se para fertilizar os campos), as ditas inspirações religiosas são da mais valiosa essência, mas em modo de terrorismo religioso, ao invés de desafiarem a consciência pessoal, explodem num dinamismo que pode configurar opressão e coação.
Abaixo exploro telegraficamente alguns exemplos:
a) Consumismo e mais um celeiro
É fascinante a passagem de Lucas que nos confronta com o armazenista imprudente que somos (Lc 12, 16-21). Construir mais um celeiro é, na metáfora evangélica, a menos libertadora e a mais acético-securitista opção. Em vez de liberdade, traz, de forma auto-centrada, mais e mais ambição. Mesmo cuidando de não puxar em demasia pelo lado teleológico da parábola (nessa mesma noite o agricultor morre), imagine-se que apetecia ajudar alguém a conter gestos consumistas e armazenistas, caricaturalmente previdentes. Seria um exemplo de terrorismo religioso confrontar tal pessoa, a quente, com esta passagem. Um dia poderá haver desejo de fazer algum aprofundamento, mas, quando se quer ajudar o próximo, há que acolher a pessoa como é e como está. Na vertente caso poderia ver-se como trabalhar o reconhecimento da ansiedade (porventura compulsão) nesses impulsos aforristas. Só depois de muito exercício interior aceite e conseguido, poderia ter sentido a pessoa auto-confrontar-se com uma passagem bíblica desta natureza que, temos de admitir, é um autêntico tesouro libertador.
Poderia ser incluído neste tipo de armamento uma célebre expressão muitas vezes usada com crianças que não querem comer: “olha que há muitos meninos em África com fome”. É verdade que há muitas pessoas que têm fome e isso deve ser denunciado e gritado a boa voz, desafiando cada um e cada comunidade a uma partilha maior. Mas diante da criança que não come é melhor rever empaticamente o que ela sente, as suas frustrações e angústias. E talvez também as nossas, pois até poderemos estar a forçar uma colher que não tinha de ser ingerida. A constatação das nossas burguesias e o apelo à distribuição devem ser abordados noutro momento…
b) Insensibilidade aos mais pobres e o bom samaritano
Este exemplo foi por mim vivido enquanto espectador e arrepiou-me por dentro, numa experiência marcante. Certo dia ouvi uma pessoa (religiosa), em chave (pseudo)cristã, a confrontar outro alguém que não estava, por sinal, a ser muito generoso com um pedinte que solicitava e que padecia. Como uma bigorna, despejou-se em cima do cidadão, em tom corretivo, a passagem em Lucas, 25, que invoca o bom samaritano. Mais uma vez estamos diante de um espelho desafiante que o Evangelho nos oferece, mas para o qual cada um, no seu tempo e no seu modo, se pode (auto, apenas auto) confrontar, e, porventura, ampliar, a partir da sua realidade interior e exterior, a atenção ao próximo e a generosidade.
Mais uma vez estamos diante de um espelho desafiante que o Evangelho nos oferece, mas para o qual cada um, no seu tempo e no seu modo, se pode (auto, apenas auto) confrontar, e, porventura, ampliar, a partir da sua realidade interior e exterior, a atenção ao próximo e a generosidade.
c) Animalismo e a centralidade humanista
Em abstrato – e pode ser útil explicitá-lo – acolher um cão tem um valor diferente de acolher um humano. Mas um acolhedor de humanos não tem garantido um coração generoso e uma ação pura, nem pode ser aprioristicamente criticado quem acolhe um cão. Estamos mais uma vez diante da tensão entre a fasquia moral abstrata e a realidade concreta de cada ser humano, imerso na sua situação. Mesmo as pessoas que gostam muito de animais, tendem a apresentar alguma latitude crítica para a excessiva dedicação, sinal dos nossos tempos, por vezes preocupante. É compreensível ficarmos um pouco impressionados, por exemplo, com uma cadela à qual, num espaço de cuidados para cães, se pintam as unhas. Mas, mais uma vez, esta problematização que parte de um caso concreto, mas se realiza no espaço global, não pode ser usada como arma de arremesso face a quem, nas suas circunstâncias, trata de um animal com os cuidados que a sua consciência, no humanismo que lá couber, se encontra.
d) Morte de entes queridos e ida para o céu
Aqui temos um clássico, mais passado do que presente, mas aqui e ali ainda frequente nas Igrejas e em algumas homilias fúnebres. Alguém chora profundamente a morte de um ente querido, numa dor e numa angústia que, sabemos todos, não tem palavras, e é abordado em exército religioso com esta bomba: “foi para o Céu, está com Deus”. É talvez o caso mais caricatural de terrorismo religioso, muitas vezes sem consciência nem intenção, admito. Mais uma vez duas entidades que podem ser ligadas e positivamente vividas (a angústia da perda e a esperança na ressurreição) mas nunca em curto-circuito, muito menos induzido por um terceiro. Deixemos chorar quem tem de chorar. Assim fazia Jesus, que, mais ainda, muitas vezes, chorava também. A esperança da vida que não morre é para fazer não sem chorar, mas chorando bem.
Temos alguns deveres de proclamar, em sentido abstrato e em cenário lato, caminhos mais proféticos. Mas o que acima se (auto)critica no terrorismo religioso é a instrumentação, a sincronia errada entre tal apelo promissor e a circunstância do outro, tipicamente em sofrimento ou em radical distração, onde não é explícita a procura de mais. Na generalidade, somos apóstolos em anúncio, mas, se quisermos imitar Jesus, a única agenda do tu-a-tu é a radical colocação nas suas sandálias, acolhendo, acolhendo e acolhendo. Só depois, e quanto a mim mediante autorização, se pode proporcionar algum (auto)questionamento que alcance outros apontamentos e horizontes. Sem a auto-explicitação da sede, qualquer excesso de água gera afogamento.
As fasquias, esticando essa mesma imagem, são feitas para serem superadas com realismo. Talvez com esforço, talvez com treino, certamente com vontade, mas sempre com possibilidade pessoal e com desejo aferido.
Notar ainda que em toda esta problemática, que é, em última análise, uma equação pedagógico-pastoral, pode residir a permissão ou não do sopro do Espírito. O Espírito Santo opera na realidade, como ela é. Quando o religioso nega a realidade (e, concretamente, o estado sagrado da pessoa em movimento), então está a negar-se, precisamente, a abertura ao Espírito Santo.
É também por isto que a Palavra das escrituras, proclamada e partilhada comunitariamente, tem um potencial imenso. Mas essa mesma Palavra e a respetiva hermenêutica inculturada são sementes a escutar, a escavar e a frutificar na intimidade sagrada e subjetiva de cada um e da sua consciência. E é isso o mais relevante na nossa fé. Quando, pelo contrário, a palavra é embrulhada em explosivo, simplesmente mutila em vez de curar. No limite, afasta as pessoas de Deus, que só sabe acolher, abraçar, criar e amar.
Valorizo as quatro dimensões proféticas da Igreja avançadas por Halik, que aparecem como aperitivos pontuais, mas que era bom que balizassem a proposta religiosa do presente e do futuro da Igreja: 1) povo de Deus em caminho na história; 2) escola de sabedoria cristã; 3) hospital de campanha; 4) lugar de encontro, diálogo e acompanhamento espiritual e reconciliação.
A abertura religiosa – precisamente a outros dizeres da fé – é ainda mais segura se for bem radicada numa experiência religiosa que confira alguma identidade. É tendo alguma pertença que a abertura a todas as pertenças se torna fecunda.
Na liturgia católica romana deste fim de semana escuta-se Jo 12, 20-33
Se o grão de trigo, lançado à terra, morrer, dará muito fruto
A analogia do grão de trigo que morre… e depois dá fruto, poderá ser uma das candidatas ao tiro mais certo para que a terra e com o que dela fazemos nos devolva, como num espelho, quem realmente somos. O grão que ficasse no celeiro, sem se sujeitar à escuridão da terra, à humidade do solo, à queima do sol e a todo o tipo de exposições… não daria fruto. Tal e qual na nossa vida: sem o risco de arriscar, sem nos sujeitarmos à chuva que molha, ao sol que aquece, à terra que enlameia e a tantos outros custos do viver, seria seco, o nosso existir.
L 1 Jr 31, 31-34; Sl 50 (51), 3-4. 12-13. 14-15
L 2 Heb 5, 7-9
Ev Jo 12, 20-33
Os três pilares quaresmais são muito inspiradores e, sendo típicos deste tempo, são pilares para a vida toda: jejum (relação comigo mesmo), esmola (relação com os outros) e oração (relação com Deus)
Fala por si Paul Ricoeur, a propósito deste lado ‘banal’ de Jesus: “As parábolas [de Jesus] são radicalmente profanas (…). É gente como nós: proprietários partindo em viagem e alugando os seus campos, semeadores e pescadores, pais e filhos; numa palavra: gente comum fazendo coisas comuns. Vender e comprar, lançar redes, etc (…). Relatos de normalidade, por um lado, e o Reino de Deus que é dito ser como isso, por outro. O extraordinário é como o ordinário”. Para mim, estás aqui mesmo o cerne do milagre que importa…
Na liturgia católica romana deste fim de semana escuta-se Jo 3, 14-21
a luz veio ao mundo e os homens amaram mais as trevas do que a luz
Acreditar é um movimento perpétuo de “jás” e “ainda nãos”. É bom colocarmo-nos na Quaresma como caminho de preparação para acolher amorosamente a morte e a ressurreição de Jesus, neste ritmo de esperanças e de incertezas. Tudo aquilo que nos prejudica, em todas as dimensões da nossa vida (psicológica, corporal, social, amorosa, etc.) odeia a luz, fica no escuro. Ficar no escuro é estar escondido, é estar no lugar onde nada nem ninguém se vê, é estar no segredo. Quais as nossas áreas de maior ou menor escuridão? Quais os nossos segredos? Podemos também confrontar-nos com a evidência de que há relações familiares que são de escuridão ou de luz, relações de trabalho, de “mim comigo”, de realidade social, política local, nacional e mundial, que estão envolvidas pela luz ou pela penumbra, ou mesmo pela escuridão total. Identificar essas situações e deixar vir à luz a bondade que há em nós e nos outros é caminho de Quaresma…
Este texto é adaptado em parte ou na totalidade de palavras anteriores já publicadas.
L 1 2Cr 36, 14-16. 19-23; Sl 136 (137), 1-2. 3. 4-5. 6
L 2 Ef 2, 4-10
Ev Jo 3, 14-21
A espera tem como perigo maior a impaciência. Por isso a fé é, em certo sentido, a esperança ilimitada que se trilha com a paciência de viver acreditando.