Dissonância cognitiva, razão e fé
A dissonância cognitiva é um excelente instrumento de confronto para a autenticidade religiosa. A procura desta coerência confunde-se com resignificar crítica e dinamicamente que a fé cristã é razoável.
J. C. Paiva, Dissonância cognitiva, razão e fé. Site PontoSJ. 10 de maio de 2019. Disponível em
https://pontosj.pt/opiniao/dissonancia-cognitiva-razao-e-fe
DISSONÂNCIA COGNITIVA
Dissonância cognitiva, razão e fé
Aprecio muito a ideia de “dissonância cognitiva”. O conceito foi inicialmente desenvolvido em meados do século XX pelo psicólogo americano Leon Festinger e entrou com alguma generalidade no léxico das ideias, do aprofundamento das relações humanas e das psicoterapias.
A dissonância cognitiva ocorre (muitas vezes, na vida de todos nós…) quando as nossas ideias, as nossas crenças e as nossas convicções não convergem com aquilo que a realidade, interior ou exterior a nós, nos devolve. Face a esta ocorrência dissonante, há várias respostas e atitudes. O perigo maior é o autoengano, as autoexplicações e autojustificações que, não raras vezes, nos levam a perpetuar a própria dissonância cognitiva. Alguns exemplos:
1- Um “clássico” de dinamismo dissonante está patente na fábula da raposa e das uvas. Na impossibilidade real de comer as uvas e face a um desejo que não quer ser totalmente assumido, a raposa diz que elas são amargas e verdes. Não é difícil imaginarmos as “uvas verdes” que invocamos para múltiplos desejos que não alcançamos, materiais ou outros. Pode ser o carro da vizinho (que para assumirmos para nós próprios a impossibilidade de o ter, dizemos que afinal não presta), a roupa daquela conhecida que afinal até consideramos que é “pindérica” (que eu não posso ter) ou (in)sucesso do filho da minha colega de trabalho entre os seus pares (que contrasta com o fracasso social do meu filho).
2- Imaginemos alguém que frequenta uma medicina alternativa excêntrica ou mesmo uma bruxa e que, para o efeito, investe muito dinheiro. Se a realidade não oferecer objetivas melhoras de saúde, gera-se um quadro de dissonância cognitiva e uma das fugas mais frequentes é uma autojustificação, mesmo que desfasada da realidade. Já que investi muito nisto, e não podendo derrapar em dissonância, direi a mim próprio e aos outros que esta solução (onde apostei muito) é mesmo boa. Convenço-me disso e atenuo a dissonância…
3- Outro caso típico situa-se no plano amoroso: o investimento (e insistência) em relações amorosas com pouco futuro. Muitas vezes estes casos andam de mão dada com instintos salvadores. Contra tudo e contra todos, investi neste relacionamento… ele trata-me mal e consome drogas mas (porque investi muito e tipicamente avancei solitariamente e negando a realidade) justifica-se esta relação, que vai vingar (vou “acertar-lhe o passo”). Prefiro esta justificação para continuar o investimento e estabelecer assim a coerência interna daquilo que, na realidade, é uma disfunção.
O filósofo Nietzsche tem um termo central na sua obra que, de alguma forma, se relaciona com a dissonância cognitiva. Trata-se da transvaloração. De alguma forma, está em causa a passagem deste dinamismo de dissonância cognitiva para a própria história e que podemos ligar à famosa “morte de Deus”.
Dos confrontos interessantes e desafiadores que vou tendo com o mundo da não crença, destaco a invocação dos meus amigos ateus de que me encontro em dissonância cognitiva, no que diz respeito à religião. O argumento é este: inventei Deus, investi muito nessa ilusão; muito tempo, ideias, argumentos, energia, vida. Mesmo que a realidade me devolva a (óbvia, para eles) ausência de transcendência, irei autojustificar a minha crença, mesmo contra os factos. Ajuda muito nesta tese o próprio confronto com a ciência que, alimentando-se de factos positivos e objetivos, “prova”(…) que não há espaço para a fé. Deixo para outra ocasião a ideia de que o entendimento da ciência num quadro epistemológico correto, nos abre espaço a outras perguntas, que transcendem a própria ciência. Isto é, a ciência, bem entendida, exprime um construto humilde e consciente dos seus limites. Por agora gostaria de me concentrar no exercício autocrítico e aberto de confronto com esta ideia (que me é colocada bastantes vezes, por amigos ateus, num contexto que considero de genuína honestidade intelectual), de que nós, os crentes, inventamos um Deus que nos coloca em dissonância cognitiva mas que, para não perder o pé, justificamos a todo o custo. Alguns apontamentos:
a) mais do que a lógica de combate, importa, nesta discussão, desenvolver a empatia e sentido de diálogo. Este traço de leitura face à religião parece-me compreensível e com bastantes pontos fortes e (contra)testemunhos do lado católico.
b) mais ainda, trata-se de um argumento que muitas vezes nos surge a nós mesmos, enquanto pessoas de fé. A crença num Deus, mesmo que num Deus de amor, como se revela em Cristo, pressupõe constantemente risco e dúvida. O nosso tateamento de Deus é sempre entrelaçado num dinamismo de revelação, isto é, com entreposição de um véu, onde “se vê” translucidamente.
c) a resposta a esta argumentação tem uma frente bastante útil: a razão. Temos o dever de dar razão à nossa fé. A tradição da Igreja, desde os tempos da cristificação do logos grego e revitalizada por muitos seres brilhantes ao longo da história (Agostinho, Tomás de Aquino, Chardin, Ratzinger, para citar alguns) pode inspirar-nos. Além deste acompanhamento eclesial, cada ser singular na fé é convidado a reconstruir constantemente as razões da sua fé. Autoconfrontarmo-nos persistentemente com o claro perigo das falácias da dissonância cognitiva, é um excelente meio de desafio à abertura transcendente. Tantas vezes, com distâncias críticas curtas face ao nosso ser religioso, nos emaranhamos numa superficialidade existencial e religiosa, não raras vezes, longe do essencial? A Igreja e, na sua comunhão, cada um de nós, tem o dever de manter vivo e afirmativo o seu sentido autocrítico.
d) fator relevante no confronto crente face à dissonância cognitiva religiosa é a própria vida. Será, em última instância, uma vida cristã coerente que nos confere a coerência interna enquanto viventes de fé. A vida, ela própria, é a realidade por onde sopra o Espírito. Portanto, se há dissonância religiosa, em muitas ocasiões, não será melhor mudar a vida, em conformidade, do que ampliar o argumentário (tantas vezes moralista), como faz a raposa com as uvas?…
Ocorre-nos, como claro modelo neste cenário, o Papa Francisco: também com as palavras mas principalmente com os seus gestos e com a sua vida, com a sua autenticidade pedagógica, ele transforma a coerência interna numa ontologia, capaz de referenciar a vida dos homens.
A dissonância cognitiva é um excelente instrumento de confronto para a autenticidade religiosa. A procura desta coerência confunde-se com resignificar crítica e dinamicamente que a fé cristã é razoável. Depois é a coerência dos próprios atos, o trabalho do processo e as portas que se abrem com cada gesto em cada tempo… A fé, diríamos em evitamento de dissonância, é salvaticamente vivível!
PS: Não esquecer que, ao jeito da linha psicoterapêutica, a nossa ajuda a pessoas em quadro de dissonância cognitiva não deverá ser o confronto direto nem o moralismo, mas o questionamento hábil, prudente e astuto, sempre misericordioso. Será sempre o próprio ser em dissonância, porventura ajudado, mas sempre ele mesmo, a mudar a agulha da autojustificação para a autodescoberta coerente…