Recensão – A Ressurreição e o fim dos tempos (P. Vasco Pinto Magalhães sj)
Recensão do livro:
A Ressurreição e o fim dos tempos
(a morte como abertura a Deus)
Vasco Pinto de Magalhães sj,
Tenacitas, 2018
in Brotéria, V. 187. julho’ 2018, p. 144
O Padre Vasco dispensa apresentações biográficos mas gostava de afirmar, neste contexto de tanta inspiração em Teilhard, que, também ele, como Chardin, tem três pilares curriculares relevantes: a simpatia pela ciência e pela tecnologia (foi estudante de engenharia), a formação teológica e a filosofia, que lhe foram oferecidas na formação jesuítica (sempre continuada). Acresce-lhe a experiência de escutante e acompanhante, a generosidade na vida e, no palco deste livro, a forma como, qual artesão, constrói palavras e novas formas de dizer o que é essencial. Este seu exercício em muito nos pode ajudar.
Desde já, muito suspeitamente, aconselho este livro. Talvez não em pico de sofrimento, de luto ou em vésperas de morte física, mas antes disso, em chave profilática. Arrisco uma analogia: assim como na educação familiar, a agudeza da adolescência se previne no amor generoso da infância, leia-se esta obra desde já, antes mesmo de estarmos perto de ser pó ou de assistirmos à morte dos que amamos. Não nos poupemos de pensar a vida porque a morte é certa.
Este é um livro quase indisciplinado. Poderia ter uma organização completamente diferente. Pode ser lido de trás para frente, a eito, de uma assentada, ou em peças avulso. Tem redundâncias (como as tem toda a obra escrita do Padre Vasco Pinto de Magalhães), ataques em espiral e quase repetições, o que não é relevante, pois a morte, como a vida, é também assim: vamos e estamos a morrer, a viver e a morrer…
Escolheria uma palavra e um conceito para resumir o livro: a palavra é relação. O Padre Vasco “abusa”, neste livro e não só, da palavra relação. Corpo é relação, pessoa é relação, alma é relação. Deus, que é aquele que É, revela-se na relação. Páscoa é relação e Ressurreição é relação.
Quanto ao conceito charneira, resumo assim: gerúndio. Este livro fala-nos de gerúndios. Estamos a acontecer, estamos a viver, estamos a morrer. Jesus está a ressuscitar e o fim dos tempos, está a acontecer. Pediria emprestado um neologismo curioso que anda nas entrelinhas desta obra: somos morrentes, antes mesmo de sermos moribundos. E vale a pena responder a esta realidade que somos sem evitar o tabu da morte. Se somos morrentes, com os olhos da fé, pois morramos por amor, e assim vivamos.
Merece destaque (p. 22), a propósito da reanimação (também ressureição, em chave mais profunda), a clarificação de corpo como o espaço das nossas relações. Mais uma ajuda, de boleia com S. Tomás, para dissipar vestígios ainda evidentes no catolicismo de uma dicotomia platónica que favorece um duvidoso substancialismo, da alma e dos demónios…
A recensão de um livro, por mais que admiremos a obra e o seu autor, como é o caso, fica incompleta sem um esgar critico. Permito-me, pois, sugerir a substituição da palavra ‘certeza’, no topo da página 27. Em vez desta, seja convicção ou mesmo fé, porque é isso mesmo que se quer dizer. Valorizo muito o item em causa, a recusa de um Deus que quisesse a morte dos justos e o sofrimento dos inocentes (não há teologia nem vida cristã com futuro que possa ser equívoca sobre um Deus de amor). Mas tal colocação, é, precisamente, a nossa fé.
O livro é para o grande público mas não deixa de projetar uma reflexão filosófica séria e profunda, com referências de contraditório como as de Sartre, Bloch (o filosofo da esperança sem Deus) ou Heidegger. E se este não fosse um livro de bolso, bem poderia tocar Martin Buber ou Levinas, ou mesmo o filósofo austríaco Ebner, porventura o pai da filosofia dialógica.
Mas salientam-se sempre as palavras certas, justas e simples, que a cada passo resumem o essencial: “Na hora da nossa morte (e da morte dos que amamos, digo eu), que é cada minuto da nossa vida, só fazem sentido os passos que foram mortes que geram vida, isto é, que foram ao encontro do outro (p. 108). Eis, pois, a revitalização da boa mortificação! (p. 47)
Chardin está sempre presente, muito mais do que quando é explícito, como na página 71, quando se escreve que o homem está em processo de transformação personalizante (mais um gerúndio…). A convergência da cosmogénese com a antropogénese e a cristogénese, referidas no início como fonte, jorra depois em todos os capítulos.
O mais central dos gerúndios que se arrasta na obra, desde o título até ao fim, pode exprimir-se na recreativa expressão (mais uma) da página 55: “Ressureição-já”. Não sendo um livro estrito sobre Ressurreição, poderemos inspirar-nos na nossa colocação face à tensão teológica constante entre a fisicalidade e o valor simbólico dos relatos bíblicos. Podemos, pelo menos, desvalorizar a questão da fisicalidade da Ressureição e acentuar o que este livro nos convida a sublinhar: Jesus está a ressuscitar, pedindo a nossa abertura às relações que cristifiquem, a vida e morte. Assim vale a pena e tem sentido ir morrendo-vivendo e, como se lê na última página, retomando em ómega o alfa do livro, “o fim do mundo será já”, mas ainda não…