Hoje, como sempre, quem canta o salmo sou eu…
Paiva, J. C. (2022). Hoje, como sempre, quem canta o salmo sou eu…Site Ponto SJ, 22-04-2022.
Disponível aqui
– “Hoje, como sempre, quem canta o salmo sou eu”.
– “Esse é o meu lugar na missa”.
– “Tanta coisa que eu dei a este grupo de catequese… e agora fazem-me isto”.
– “Se há pessoa que merece ir a este curso de formação, depois de tantos anos de empenho, sou eu”.
– “Preparei com tanta dedicação esta oração, e acabaram por meter tudo no lixo.”
– “Tantos anos a trabalhar nesta paróquia, para levar agora um ‘chuto’.”
– “Sempre quis pertencer a este grupo… e hei-de conseguir!”
– “Os cânticos são comigo!”.
– “Escolhem sempre os mesmos (nunca a mim…)”.
– “Fiz tanta formação e não me aproveitam”.
– “Uma vida dada a esta congregação, para me colocarem agora numa prateleira…”
– “Paguei tanto para esta obra e agora não tenho direito a nada”.
– Etc, etc.
Sem comentários, para lançamento de conversa, temos, acima, expressões que podemos ouvir em paróquias, grupos de reflexão Cristã, Movimentos e carismas, bastidores religiosos, congregações religiosas e comunidades.
Todas estas expressões, algures entre a imaginação e a criatividade, projetam um forte entrançado psico-socio-religioso de comparação, procura de reconhecimento, mérito, prémio, vitimismo, falta de autoestima e protagonismo. Os bastidores destas frases, sem exceção, inclinam-se mais para o privilégio e para a cobrança, do que para a gratuitidade e para a consciência do dom. Projetam também, claramente, algo que nos une a todos: fragilidade, sede, busca de sentido e procura de um lugar.
A Igreja é, definitivamente, uma casa para todos. Novos e velhos, bons e maus cantores, gente mais e menos culta. E falo de pessoas com variada relação, quer com a cultura das academias, quer com a (agri)cultura da natureza e da vida. O que nos une a todos é uma esperança e uma carência comuns, que converge num sentido de esperança vivida de forma comunitária, tendo o Evangelho como referência. Todos temos lugar. Acontece que Cristo – Presente na fé e inspirador – nos remete para uma tensão de (auto)descentramento constante. E, por Ele, com Ele e n’Ele, estamos não só autorizados, mas incentivados, a mexer as águas. Respeitar demasiado (entenda-se…) as posições/vontades/desejos/sonhos de cada um parece-me, cada vez mais, pouco cristão.
O equívoco central desta problemática é uma bomba explosiva de mérito e procura de reconhecimento. Quando se entende que “se merece” seja o que for, em dinamismo apostólico, está o caldo entornado. Pelo contrário, a colocação de dádiva desinteressada deveria ser o filtro da porta da entrada em qualquer protagonismo de estrutura eclesial. Cada um propõe ou propõe-se, e a circunstância é mesmo essa: uma proposta. Só é genuína proposta se for desapegada, livre, desautocentrada, pronta, portanto, a ser aproveitada ou não. Quem se impõe, ou impõe, mesmo que subtilmente, não tem lugar na comunidade dos cristãos. Cristo é modelo de perfil proponente, numa fidelidade de desapego que sacode livremente o pó das sandálias.
É evidente que este processo de filtro purificante de intenções é um exercício complexo e moroso para todos nós, a pedir trabalho pessoal, comunitário e, sobretudo, criatividade comunicacional. Mas, esse é o ponto central desta despretensiosa reflexão, pede frontalidade e verdade. Os adultos não se devem infantilizar e os monstros não se devem alimentar. Em algumas personalidades que circulam nos corredores atuantes da Igreja, há perfis muito autocentrados e, em muitos casos, quase narcísicos. Tolerar eucaliptos que chamam a si toda a humidade da terra, é secar os campos e comprometer outras fecundidades. Dinamizar cristãmente não é ser bonzinho, mas tatear a esperança na realidade, como ela é.
Há casos particulares que merecem atuações particulares. Por exemplo, com crianças, tem sentido dar lugar a todos para lá dos seus talentos performativos. Mas para adultos (ou adultos em trânsito, como todos somos) há que ir desbravando novos e assertivos caminhos. Nos espaços de assumido terreno celebrativo ou apostólico, em particular, quem está, terá que estar desapegado, pronto a, se preciso for, não ter qualquer papel especial, precisamente porque somos todos especiais e estar e pertencer é o único eventual direito que podemos ter.
Nestes cenários não há bons nem maus. Somos todos débeis caminhantes e, quando distraídos, todos procuramos reconhecimento, muitas vezes embrulhados no feliz estrangeirismo de fishing for compliments: lança-se a isca para sacar reverências. E no final dos eventos, mais do que avaliar frutos, fazemos por colher louros. Poderá ajudar-nos a todos, no acerto da desumbilicalidade, dizer a nós mesmos, este paradoxo: “és profundamente amado aos olhos de Deus mas não tens de ser assim tão importante aos olhos dos outros”. Cada um fará por escutar as suas próprias moções e fazer o seu trajeto de descentramento. Mas no trabalho comum e nas procuras cénicas e performantivas de cariz apostólico, deixar andar não é caminho…
A parrésia, de que tem falado o Papa Francisco e que tanto inspira o atual movimento sinodal, convoca a humildade (contacto com o húmus, com a realidade…), a liberdade de expressão, a escuta e a assertividade. Quem tem lideranças apostólicas (espaço que cada mais, creio, deveria ser ampliado a todos os batizados, sem exclusividade de ordenados), poderá perguntar-se se não é demasiadamente passivo face às enquistações crónicas nas organizações cristãs. Expressões como aquelas com que se iniciou esta reflexão, nos fóruns próprios e nos modos adequados, não poderão ficar sem feedback e não poderão servir jamais para, com a boa desculpa de não ferir, deixar tudo na mesma. Julgando respeitar as várias sensibilidades e personalidades (ou enquistamentos e monopólios?) poderá estar a contribuir-se para um comprometedor status quo, que não é bom nem para os instalados, nem para os candidatos ao caminho…